segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Galantina de mistura de carnes

Avisei que, com restos de boa geleia de carne, da cozedura da mão de vaca, ia fazer uma galantina. Aqui vai, é a receita desta semana. Toda a gente conhece o nome galantina dos fatiados que se compram em qualquer supermercado, de uma pasta sólida de carnes, envolvida numa gelatina. Tipicamente, o recheio moído é em pequena quantidade, só para envolver carnes e outros ingredientes em cubos. 
Outra coisa relacionada mas diferente é a balotina, muito mais difícil de fazer, porque é um preparado de recheio, em princípio todo em pasta, envolvido por uma galinha (ou pato, borrego, borrego, coelho e até peixe) totalmente desossada mas sem ferir a carne, coisa que exige boa técnica e boa faca. Já a fiz e já comi feita pelo meu irmão cozinheiro esmerado. Mas só ele e a sua capacidade de dedicação de horas à confeção de uma refeição de alto nível; eu não me dou a tanto trabalho a não ser uma vez na vida, e já foi. Mesmo esta galantina dá trabalho, mas vale a pena.
A pasta da galantina, com abundância de coisas cortadas aos cubos pequenos, é moldada e vai a cozer envolvida em pele de galinha, cozida com linha grossa de cozinha e depois ainda bem atada a toda a volta. É coisa que consegui do meu talhante, combinação prévia para a dita pele não ir para o lixo, mas não deve ser fácil encontrar talhante assim simpático. Claro que o podia - devia! - ter feito eu, esfolando um frango do campo inteiro. Mas assim foi mais prático e muito menos trabalhoso. Alternativa, descrita em muitas receitas: embrulhar num pano branco molhado, atando para não se desembrulhar.
500 g de peito de frango do campo, 250 g de perna de porco, 100 g de bacon com pouca gordura, 100 g de cogumelos, 2 ovos batidos, 50 g de pevides de abóbora descascadas, 125 g de pasta de fígado de pato, 1 cálice de Biscoitos Chico Maria semi-seco (ou o equivalente Madeira, ou mesmo Moscatel), sal, 8 grãos de pimenta preta, 5 grãos de pimenta da Jamaica. Para o caldo. A carcaça do frango, partida (ou miúdos), 1 cebola picada com 4 cravinhos, 2 dentes de alho esmagados, 1 cenoura, 1 alho francês às rodelas, 1 talo de aipo com rama, sal, louro, salsa, tomilho, pimenta preta. 5 dl de geleia de carne (caldo de cozer mão de vaca, temperado, se necessário acrescentado com mais gelatina em folha, cortada aos quadrados, amolecida em água fria e derretida no caldo quente).
Moer e misturar em pasta todos os ingredientes, com os temperos, exceto os cogumelos e o bacon, que se cortam em cubos pequenos. Entretanto, fazer o caldo, fervendo durante 30-45 minutos (pode-se cozer ao mesmo tempo os legumes e a pasta, mas ocupa muito espaço na panela, pelo que é preferível fazer antes o caldo e coar). Aproveitar os legumes para coisa que fiz e de que direi um dia destes (à Lavoisier, "nada se cria, nada se perde, tudo se transforma").
Revestir o fundo de uma forma alta (por exemplo, uma terrina de carnes ou uma forma retangular de bolos), muito ligeiramente untada com óleo, com uma camada de cerca de 1 cm de altura de geleia de carne clarificada e levar ao frigorífico, para solidificar. Entretanto, moldar à medida dessa forma, mas deixando bom espaço aos lados, a pasta de carne envolvendo bem os cubos de bacon e cogumelos, forrando o exterior com um resto de pasta. Embrulhar com a pele de galinha, bem fechada com linha de costura/cozinha, ou com o pano humedecido, atar bem e cozer no caldo, a lume baixo, durante 40-50 minutos, conforme o lume.

Para clarificar a geleia, juntar ao caldo da mão de vaca 2 claras de ovo batidas ligeiramente e as respetivas cascas, bem esmagadas. Levar à fervura, mexendo, e cozer durante cerca de 15-20 minutos. Coar por papel de cozinha.
Retirar a galantina do forro de pele e espremer um pouco, para desengordurar. Embrulhar num pano, atar novamente e deixar arrefecer sob uma placa dura com um peso (250-300 g; não pressionar demais, para não ficar seca), para dar consistência e dimensionar de forma a ficar na forma com 5-10 mm de folga aos lados. Preencher este espaço com geleia liquefeita e clarificada, cobrir com mais geleia e deixar solidificar, no frigorífico. Retirar meia hora antes de servir e desenformar.
Acompanhar a gosto. Quando fiz esta receita, acompanhei com espargos verdes cozidos ao dente, com um toque de alho e um raminho de poejo, e arrefecidos.

domingo, 30 de janeiro de 2011

Pastéis de massa tenra (II)

Afinal, mudei de ideias, depois de evocações mútuas de infância e do gosto de tentarmos recordar e refazer memórias antigas que já não temos quem no-las transmita com inteira segurança. Como disse, temos ideia de que, em ambas as casas, croquetes e pastéis de massa tenra se faziam com os restos de carne assada, quando não apetecia comê-la outra vez da mesma forma ou quando o molho já se tinha ido.
Anote-se que “carne assada”, em ambas as famílias, tão distantes geograficamente, era de facto carne estufada, na panela. Da minha tradição, publiquei a receita em “O gosto de bem comer”, pág. 278. Quanto ao seu derivado recheio de pastéis, a ideia que temos é de que era praticamente só a carne, moída, a ficar granulada, ligada com um pouco de molho a dar sabor, e uma pequena liga de farinha e leite. "Se non è vero, è ben trovato".
À falta de informação segura, resolvemos fazer o mais simples, de que não tínhamos dúvidas, e com que também concordou um dos meus irmãos, aquele que mais longamente acompanhou a culinária familiar. A peça de vitela (alcatra) foi estufada de véspera, como descrevi no livro: a carne bem estalada em margarina dietética (devia ser óleo, mas a minha dietista é minha leitora…), acrescentada de bastante cebola aos gomos e da vinha-de-alhos em que ficou. Esta não ficou, foi decidida à última da hora, por isto levou os temperos para o estufado: alho, vinho branco, um pouco de vinagre, louro, salsa, tomilho, sal, pimenta preta, pimenta da Jamaica.
O recheio (em dose para 4 pessoas) foi simplesmente esta carne, 500 g, moída no velho moinho de carne (não na misturadora de lâminas!), embebida em 2 c. sopa do molho do assado, muito apurado, polvilhada com 2 c. sopa de farinha e bem mexida, incorporando-se depois 6 cl de leite. Parece que, na minha casa de família, quando os restos de carne já não tinham molho, se começava por saltear a carne moída num pouco de refogado de cebola picada muito fino (pouca quantidade, só a dar sabor e a engordurar um pouco). 
Claro que não se justifica todo este trabalho para fazer simples pastéis de massa tenra ou croquetes. Foi só uma brincadeira, de rememoração. Para o dia-a-dia, sugiro que experimentem o recheio descrito no “post” anterior. Como acabei por não experimentar, digam depois de vossa opinião.

Confesso que violei parcialmente a minha dieta. Já que estávamos em experiência, metade dos pastéis foram ao forno, como escrevi na entrada anterior, metade foram fritos, como manda a tradição. Os assados ficaram muito bons e recomendam-se dieteticamente, mas os fritos sempre fazem diferença!...

Nota - Dose para quatro pessoas para só duas comerem? É que já ficou recheio para outra experiência, os croquetes com a mesma lógica, de carne previamente cozinhada. Claro que o recheio vai levar pequenos ajustamentos.

sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Pastéis de massa tenra

Nas nossas conversas conjugais e gastronómicas de jantar de fim de semana, em que me esmero, chegamos sempre à conclusão de que temos experiências muito comuns, afinal da velha cultura gastronómica portuguesa, na variante burguesa, citadina, mesmo que de um lado e outro da linha equatorial. Vem isto a propósito de coisa muitas vezes lembrada, uma banalidade esquecida, mas que para ambos é uma grande memória das avós, os pastéis de massa tenra. Vem isto de hoje ter comido um, horroroso. Domingo vou-me desforrar. Amanhã não, porque já há outro programa, que logo verão.
A minha avó materna pontificava na cozinha, enquanto a minha mãe professava (salvo seja, quero dizer, trabalhava como professora). Por isto, a minha herança culinária é Fagundes, praiense, terceirense, mas com assimilação de muitas coisas boas, de raiz micaelense, da minha avó paterna, lado Viveiros. Entre elas, o polvo e o molho de fígado, famosos nas Capelas e redondezas, incluindo S. Vicente do retiro filosófico do meu querido amigo Jorge. E também os pastéis de massa tenra, que a tradição de família diz se deverem a uma esquecida criada Piedade.
Se a quiserem fazer, e não é nada difícil, aqui vai a minha receita familiar, afinal a geral mas com pequenos truques. 250 g de farinha, 4 c. sopa cheias (50 g) de banha, 1 dl de água, sal, um pouco de açúcar, a gosto. Se se quiser aligeirar, usar banha e manteiga, 2:1. Desde logo, na receita, como toque de diferença de receita familiar, a banha em exclusivo e o açúcar. Faz-se como uma massa quebrada, mas deve ser mais amassada, com o ponto importante de, no fim da mistura, se juntar parte da água muito fria. Depois, como em regra, embrulhar num pano e deixar repousar uma hora, no frigorífico. Também se trabalha a meio caminho como massa folhada, estendendo e dobrando, duas vezes (claro que sem juntar gordura).
O recheio, na minha casa e na da morena, era um moido de restos de carne assada ou guisada, refogada. Se não, com carne crua, compensar em temperos. Aqui vai uma sugestão, de compromisso.
500 g de carne de segunda (aba, acém, cachaço, chambão), 1/2 cebola, 1 dente de alho, 2 c. sopa de manteiga ou de margarina dietética, 2 c. sopa de farinha, 5 cl de vinho branco,  5 cl de leite, sal, pimenta preta moída a fresco, pimenta da Jamaica bem esmagada, tomilho a gosto, 1 raminho de salsa, atado.
Refogar a cebola e o alho, muito picados, com o louro. Juntar a carne moída em moinho de furos (!) e voltear bem, até bem alourada. Polvilhar com a farinha, até bem incorporada e alourada. Temperar e misturar o líquido, ferver a lume baixo deixando espessar muito grosso, mexendo sempre muito bem para não pegar ao fundo. Juntar goles de água, aos poucos, se necessário. Retirar o louro e a salsa. Estender muito bem a massa, cortar círculos grandes, rechear, fechar os pastéis, pincelar com gema de ovo e levar ao forno (pré-aquecido!), a 190º, 20-25 minutos. Deixar reduzir à temperatura de servir, no forno apagado, com a porta um pouco entreaberta.
O meu alter ego culinário, D, recomenda-me coisa que nunca fiz, mas que talvez fique muito bem. Reserva um pouco da carne, crua, para moer fino em misturadora de lâmina e acrescenta ao refogado de carne e à farinha, antes de prosseguir com a adição de líquido. Diz que a mistura de ambas as carnes resulta cremosa/granulada sem ficar borracha como se come por aí.

(Editado, 30.1.2011)

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Peixes dos Açores

Ainda escrevendo na anterior página Do Gourmet, deixei uma promessa que agora vou cumprir, pelo menos parcialmente. Fiquei a saber que, para além da ementa, há uma coisa ‘de que as pessoas já não gostam, só de encomenda’: o clássico peixe assado no forno à portuguesa. Claro que lá irei, mas tem de ser a quatro. E com boa escolha do peixe. Essa é toda outra história, a do peixe para assar (como, aliás, o peixe para cozer, o peixe para fritar, o peixe para grelhar) com muito da minha tradição de menino. Não me venham dizer que os portugueses sabem comer peixe. Sabiam! Fica para a próxima.”.
A próxima é hoje, e essencialmente sobre esta coisa aparentemente banal: que peixe para que confeção de peixe? Isto tem de puxar aos meus hábitos de infância açoriana. Em relação a peixe, é difícil, porque muito bons peixes dos mares açorianos dificilmente se encontram cá (a veja, o mero, o bonito, a serra, a anchova, o alfonsim, a bicuda, o lírio, muitos mais) ou são lá espécies ou variantes de muito de melhor sabor e textura, como, paradigmaticamente, o carapau (o chicharrinho açoriano), a abrótea e mesmo a garoupa.
Na tradição açoriana - como aliás na portuguesa, em geral, salvo alguns portos de mar - não entra o moderno grelhado. Por isto, julgo que ainda não há uma verdadeira sabedoria portuguesa em relação ao peixe grelhado, em termos da escolha dos melhores peixes para grelhar, da técnica diferente de grelhar peixes gordos e peixes magros, peixes pouco espessos e peixes grossos. Se fino como linguado, grelhado seco que nem sola. Se grosso, escalado. Até o uso hoje vulgar do azeite e vinagre, em vez do molho de manteiga e limão, com salsa (eu diria que alternativamente cebolinho ou cerefólio), que pede um bom peixe grelhado.
Peixe da minha meninice comia-se cozido, em água ou ao vapor, quase que invariavelmente abrótea. Nunca às postas, como cá a pescada, antes o peixe inteiro, a servir em pedaços ao longo do lombo, a lascarem. Fritos, claro que os "charrinhos", mas também todos os peixes pequenos, tantos que não vou enumerar, mas referindo alguns que julgo serem pouco vulgares por estes lados: besugo, cantarino, boga, tainha, peixe rei. Ao menos o bodião cá vai aparecendo cada vez mais. Também excelente para fritar, em lombos, abundante cá e lá, o goraz pequeno ou o sargo (muito bem que o queiram grelhado, mas há outras formas de o fazer). Em contrapartida, não me lembro de lá comer coisas cá tão populares como a faneca, a salema ou a pescadinha. Ou, como peixe grande, a corvina.
Exceção para dois peixes grandes para fritar, às postas, a garoupa e a moreia. Moreia nunca cá vi à venda. É excelente, com muito sabor em que entra a abundante gordura, não enjoativa. Tem uma pele grossa que, ao fritar, se destaca da carne e a protege de fritura demasiada, não deixando o peixe secar. Também para fritar, mas como filetes, a abrótea. Para meu gosto, filetes inigualáveis, que os visitantes podem comer em qualquer restaurante razoável nos Açores.

Também, mais à moderna do que a tradição de cozido/frito/assado, dois grandes peixes açorianos para pratos mais elegantes, salteados, estufados, em lombos ou medalhões, o cherne e o mero (Epinephelus guaza). Sobre o porquê de eu indicar os nomes taxonómicos, ver nota no fim.
Mas tinha ficado de falar era sobre peixe para assar. Talvez por desconhecimento meu da tradição continental, julgo que a variedade de peixes para assar, nos Açores, é bastante maior. E não é que o procedimento seja muito diferente: peixe inteiro com alguns golpes de faca, cebola às rodelas, alho, tomate, eventualmente colorau, louro, salsa, sal e pimenta, azeite, vinho branco, batatas aos cubos. A mais, à açoriana, malagueta, açaflor e - na Terceira - pimenta da Jamaica.
Cá, o rei (decadente, porque já não se faz peixe assado) é o pargo, Sparus pargus. Também o imperador, da mesma grande família, Beryx decadactylus. Já tenho visto também, e bom, o capatão, Dentex gibbosus, com o senão de ser muitas vezes grande demais para uma família pequena. Também vejo nas peixarias outro familiar do pargo, também usado nos Açores, o pargo mulato ou chaputa, Plectorhinnus mediterraneus.
Esta do mulato, escuro, lembra-me os meus hábitos açorianos. Se formos à cor dos peixes mais usados cá para assar, é classe vermelha ou rosada. Nos Açores, são principalmente peixes de pele escura. Começa logo por, de longe, ao que me lembro, o peixe mais apreciado para assar - com a excelente variante de recheado - ser a garoupa de tamanho médio. Não tenho ideia de o pargo e os muitos peixes que em inglês se agrupam na designação genérica de “bream”, pargos e todos os seus primos, rivalizarem com a garoupa.
Isto não exclui muitos outros excelentes peixes açorianos para assar. É pena que não seja fácil encontrá-los mesmo lá, nos restaurantes, mas se ficarem em sítio açoriano em que possam cozinhar, recomendo vivamente uma ida à praça e a compra de um destes: anchova (Pomatomus saltator), bicuda (Sphyraena sphyraena), serra (Sarda sarda) - que também há cá, como sarda, mas mais pequena e de muito pior qualidade - encharéu (Pseudocaranx dentex, outro dentex), o excelente lírio (Seriola sp.). Até o goraz (Pagellus bogaraveo), quando grande.
Nota final para dois casos exemplares. Há um peixe que fazia parte da minha mesa de menino e que hoje está pelas ruas da amargura, a cavala. Porque não dá para cozer, muito menos para grelhar, só para assar ou então, como faço tantas vezes, para marinar crua, em filetes, estilo maatjes. Outro é peixe quase desconhecido cá, mas que vou vendo muito ocasionalmente nas peixarias, o rocaz (Scorpaena scrofa). Excelente, para medalhões, lombos, salteados ou estufados. E com o melhor fígado, amariscado, a seguir ao salmonete.

Nota: a referência aos nomes taxonómicos não é "show off" de erudição. É só para permitir aos leitores fazerem "copy-paste" no Google-imagens ou na Wikipedia e verem como é o peixe, tentando depois encontrá-los nas peixarias.

domingo, 23 de janeiro de 2011

Mão de vaca gratinada, da minha família

Ao prometer uma receita semanal, disse que tanto podiam ser de minha invenção como de património familiar. Para começar, julgo que devo dar primazia a este património, não só por valor estimativo mas principalmente pela razão prosaica de me ter caído sob os olhos, no talho, uma coisa que me apeteceu e que sabia que ia deliciar a morena. 

A divulgação do património culinário familiar é coisa relativamente recente e conheço quem ainda não o faça, com a noção enraizada do "segredo de família". Foi coisa resolvida na minha, ainda com o peso da opinião da minha mãe, quando publiquei o meu livro "O gosto de bem comer", que já incluía bom número desses "segredos". Entendemos que a melhor homenagem a quem foi construindo essa herança, ao longo de gerações, era dá-la a conhecer. Ainda por cima, ficando para nós a última palavra, no sentido de que, em muitos casos, não basta a receita, é preciso a pedra de toque do sabor de infância e a experiência antiga de saber fazer, por muito ter visto fazer.
Começo por uma mão de vaca única, que nem sei bem como chamar. Gratinada, como vai em título, talvez seja o melhor adjetivo, porque é a única que conheço que vai ao forno. Não sei porquê, em miúdo detestava este prato tradicional de família, que hoje me delicia as papilas gustativas. É receita estranha, do meu património familiar terceirense, mas sem raízes facilmente identificáveis, a não ser em coisas francesas ou de cozinha internacional de hotel que o trisavô patriarca levava com vestidos e rendas, de volta da visita à civilização, ao arribar ao Cabo da Praia. Neste caso, nem posso invocar uma óbvia origem francesa: das oito receitas de mão de vaca de Escoffier, mais a do Larousse, mais algumas de "sites" franceses de boa qualidade, nenhuma se assemelha a esta.
Não lhe encontro parentesco nas recolhas de cozinha tradicional da Terceira nem em registos de cozinha continental. Nos Açores, mão de vaca é um guisado com batatas, num caso recolhido juntando ervilhas; no continente com feijão ou com grão (diferença que se prolonga para a dobrada, no continente com feijão, nos Açores com batata). E esta mão de vaca vai ter continuação, dessa vez em receita minha, embora com base clássica. Que fazer com o resto, abundante, da geleia de carne? Esperem pela minha galantina, feita hoje mas descrita só para a semana.
Para 4 pessoas. 2 mãos de vaca, cerca de 2,5 kg, de preferência dianteiras (opcionalmente 3 de vitela, mas tendo de se ajustar os tempos de cozedura, por se desfazerem mais facilmente), 1 cebola, 2-3 dentes de alho, 1 folha de louro, sal, 8 grãos de pimenta preta, 5 grãos de pimenta da Jamaica, 1 folha de louro, um raminho de salsa. Para o guisado, 3 c. sopa de manteiga (mais correto, hoje, de margarina dietética), 1 cebola, 2 dentes de alho, 1 c. sopa de polpa de tomate ou 1 c. chá de concentrado de tomate, 1 raminho de salsa, sal, tomilho, 8 grãos de pimenta preta, 6 grãos de pimenta da Jamaica, 3 limões galegos (na falta, 1 limão, 1 lima e meia laranja). Tosta ralada.
Em panela de pressão (contra a tradição, mas conservadorismo exagerado é burrice), colocar as mãos e os temperos da cozedura, cobrir com água e cozer durante 30-40 minutos. Remover as mãos e cortar em pedaços de cerca de 3-4 cm de lado. Coar o caldo e reservar. Refogar a cebola picada muito fino, mesmo pisada a fazer pasta, com o alho. Quando alourada, juntar o tomate e os temperos e dar mais algumas voltas, acrescentando depois os pedaços de mão de vaca. Voltear bem, demoradamente, até a pele ficar bem alourada. Acrescentar caldo, sem ficar muito aguado e deixar apurar. Se necessário, ir acrescentando mais uns goles. No fim, juntar o sumo de limão galego.
Passar para assadeira não untada (o molho não permite mais gordura) e polvilhar com tosta ralada. Levar ao forno a 200º, até bem gratinado. Na tradição de família, acompanha-se com puré de batata com azeitonas e com fatias de pão frito. Também fica muito bom com uma coroa de puré, consistente, na assadeira, regada com caldo da mão de vaca e também polvilhada com tosta ralada.

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Gosto de bem comer ou livro de receitas?

Não há bloguista que não tenha o seu leitor de estatísticas, mantido mais ou menos em segredo. Dá para afagar o ego, mais vulgarmente dito coçar o umbigo, ou, mais sabiamente, para refletir sobre coisa importante: “vale a pena o esforço da minha escrita?”.
Claro que isto é mais complicado, porque há muitas outras perguntas subjacentes: “O que é que eu pretendo?” “Quem desejo que me leia?” “Não passo sem a gratificação de ser lido por muitos e muitos?” “Que preço pago para que me leiam muitos e muitos?” “Que imagem minha tenho de defender?”.
Isto vem a propósito de alguns conselhos amigáveis de um autor muito bem sucedido com o seu blogue de gastronomia/cozinha/receitas, a quem pedi opinião sobre o que são os truques da blogosfera gastronómica em que estou a entrar outra vez. Começa logo por esta coisa elementar. Tenho escrito “do gourmet”, mesmo este blogue se chama “o gosto de bem comer”, tudo valoriza a cultura gastronómica, o gozo e o prazer da mesa, mais do que o catálogo de receitas, embora o tenha.
Diz-me o meu amigo, provavelmente com muita razão, que assim não vou lá (ir lá, quer dizer muitos leitores). Há uma grande rede, com processos úteis de busca e referência cruzada, que só se interessa por receitas. Cultura gastronómica, notas de bom gosto, são para conversa de amigos. Com muito “know how”, diz-me que é essencial, para sucesso neste circuito, até cuidar dos títulos dos “posts”, apontar sempre para receitas, principalmente com ingredientes na moda. Importante também, porque há a “googlice” por imagens, muitas fotos de cada passo da confeção. Que rede é esta? Cozinheiros parasitas? Tias a fazerem circular as mesmas receitas? Olivers e outros chefes da net? Se calhar coisa bem mais simples: a mãe de família que se deu ao luxo de comprar um produto desconhecido, que ela advinha ser coisa requintada e que vai à net procurar uma receita para o dito cujo.
Dei-me ao trabalho de analisar este reino gastronómico/culinário da net, por amostragem pouco rigorosa. Grosso modo, vou distinguir três áreas: 1. a crítica de restauração; 2. a conversa de cultura gastronómica, sua história, suas normas, seus valores; 3. as receitas.
1. De crítica de restauração, pouco há na blogosfera portuguesa. Destaco o “no prato com” e tenho pena de não poder referir um blogue muito bom a que já não consigo aceder, parece que reservado a convidados, o “contra prova.  É muito pouco, a contrapor aos críticos encartados, dos suplementos dos semanários. "Googlei" pelos blogues equivalentes espanhóis. São muitas dezenas, muitos obviamente de grande saber, principalmente concentrados na crítica de restaurantes madrilenos e barceloneses.

2. De conversa gastronómica “pura”, da que eu gosto, divagando entre paladares, memórias,  erudições snobes e evocações de doidices de jovem, também há pouco. Mesmo que poucos, são os blogues que me merecem, quando tiver tempo, o destaque de chamada de atenção, na coluna ao lado. Quando o fizer, aviso.
3. Pior é o capítulo das receitas, que domina a net, como se vê se “googlarem” cozinha ou gastronomia. É claro que ninguém lá espera encontrar receitas de Adriá ou Santamaria. Mesmo encontrar centenas de receitas de Jamie Oliver ainda é aceitável, desde que não chamem grande chefe a esse sabidão destas lides de net culinária, que lhe faça bom proveito. O problema é que a enorme variedade de qualidade dos blogues de receitas é piramidal: um topo de muito boa qualidade mas correspondendo a um pequeno número, uma base enorme de nível rasteiro, ou não seria a base, tendo uma coisa em comum, os comentários de pessoas que até nos despertam simpatia, que querem fazer umas coisas jeitosas para amigos, e que inundam - uniformizando, nivelando por baixo - os comentários: “que apetecível!, que coisa tão imaginativa! (?), como os meus amigos vão gostar, que bom jantar vou fazer”. E as autoras babam-se, deliciadas.
Isto não tem nada de mal, muito pelo contrário. Esses leitores/comentadores desvanecidos são muitas pessoas que querem melhorar a sua péssima aprendizagem culinária, interrompida depois da urbanização foleira das suas vidas na vertigem pequeno-burguesa dos anos 60-70, que lhes destruiu as raizes. Que, recorde-se Sttau na Mosca, descobriram então a maravilha dos jaquinzinhos com natas o "must" das churrasqueiras. 

Simplesmente, e compreensivelmente, o nível de exigência e de deslumbramento dessa multidão de leitores é muito baixo. Dele vivem - e se conscientemente é desonestidade - centenas de escribas na net (e, em alguns casos, na televisão). Sem razão, porque, com um “jeitinho” para a cozinha, não “inventam” melhor do que os muito razoáveis folhetos que recolho no Pingo Doce aqui a riba de casa - e que até já foram da responsabilidade de uma ótima gastrónoma, minha amiga.

Não vou contribuir para este peditório. Se o tal sucesso de um blogue, medido pelo número de visitas, é isto, estou a perder o meu tempo. No entanto, como experiência “científica”, com análise estatística, vou fazer um exercício, o de publicar semanalmente uma receita que não seja de “tias”, uma receita em que me reveja criativamente, uma receita que não possa ser criticada (claro que pode ser sempre) por falta de técnica ou de cumprimento das regras essenciais de harmonia, composição, solfejo, orquestração, da boa cozinha. Até podem não ser minha invenção, apenas a divulgação do meu excelente património herdado. Também vou transformar em e-book, para descarga gratuita, toda a coleção de receitas que publiquei até agora no meu “site”. Vamos a ver. Vão ler-me 30 pessoas? Logo tirarei conclusões.

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

Lista esgotada

Há um défice grande de qualidade, ou de relação qualidade-preço, numa grande camada intermédia dos nossos restaurantes. Muito bons, de cozinha de autor, mas bem caros, temos bastantes e muito recomendáveis. Não falo só dos de luxo e estrelados, falo de todos os que servem cozinha de autor. Por vezes, em termos de preço, até com a vantagem de, em tempos de crise, oferecerem almoços de ementa fixa relativamente baratos e menus de degustação, tudo a preços que não são do quotidiano mas que não são exagero de luxo, mesmo em tempos de crise.

No outro extremo, restaurantes de bairro, atascados, toalha de papel, jogo de futebol na televisão, a típica travessa de alumínio, empregado de jeans e nenhum requinte no serviço, mas muitas vezes boa cozinha solidamente tradicional e apurada por cozinheiros com gosto pelo que fazem, também há muitos, felizmente. À minha volta há-os suficientes para serem o nosso almoço de sábado, sem ficarmos mal dispostos para o habitual esmero do jantar.

Pior são os restaurantes à moda, de 1ª (ainda não percebi como se classificam os restaurantes) em bairros novos de uma camada com relativa folga financeira e que vai por diz-se que é bom, por ementas aparentemente de "cozinha erudita", por um ambiente bonito, por um serviço com tiques de qualidade. Ainda estou por conhecer, em Lisboa, pelo menos uma dúzia que valha a pena.

Um dia destes, recomendaram-me um, em bairro de classe média-alta. Surpreendeu-me que não tivesse rodriguinhos; pareceu-me honesto, mesmo com o estilo geral de restaurante à moda, preto, prata e espelhos. A ementa até era muito simples, com boa raiz tradicional. Ementa curta, mas que por isso me valeu a experiência notável de quase tudo estar esgotado, às oito e meia da noite. Para entrada, duas coisas aconselhadas não havia: uns camarões da casa e amêijoas à Bulhão Pato. Desculpei, pensei que em relação aos primeiros deviam ser frescos e que, em ambos os casos, a culpa seria do mau tempo que tinha feito nesse dia e nos anteriores.

Pior foi já não haver o prato que me tinham recomendado como especialidade da casa: pastéis de bacalhau com arroz de tomate, "banalidade" de que gosto muito. Como é que se pode esgotar tal coisa? Percebi depois, olhando para a cozinha que, também à moda, era facilmente visível pelos clientes (não gosto, a não ser em tasca ou restaurante rústico). Afinal, o que faltava era o ou a cozinheira, deixando a cozinha, ao jantar, entregue a uma jovem aprendiz que se limitava a fazer sair uns grelhados simples e o único prato de tacho, só aquecer, umas favas que comi e que até não estavam nada más.

Faltou ao restaurante cozinheiro para todo o dia. Sinal da crise? Mas não pagámos pouco.

domingo, 16 de janeiro de 2011

O problema das preposições - bife à café ou bife com café?

Bife à café é o mesmo que bife com café? Não é só questão de sabedoria gastronómica elementar, é também de domínio primário da gramática portuguesa. Já lá vão bastantes anos que me defrontei com esta questão. Jovem a iniciar-se na restauração lisboeta, claro que não perdi os bifes, os da época: Nicola, Império, Vavá, Portugália, José Ricardo, 1º de Maio, Relento, tudo bifes à café, rivalizando em pequenos pormenores mas todos respeitando o essencial, de que falarei. Todos fritos, que não havia então a mariquice do grelhado. Na altura, tinha-se perdido de memória o Marrare e o Jansen, figurando ainda o Faustino como chamado “à portuguesa”, mas já com fiambre a substituir o presunto caro. Diferente, magnífico, só lá no outro lado do mar, o meu bife à micaelense, com alho e malagueta.
Nessa altura, uns tantos de nós já casados precoces, com casa e gosto de bem comer e de fazer bem comer os amigos, coisa que cultivávamos era o “nosso” molho de bifes. O meu, como os poemas de juventude que nenhum bom poeta publica, era uma charunfada!
A minha tal experiência de primeiro horror foi na minha cantina. Cantina, dirão, que quer ele? É que, como verão a seguir, não era cantina vulgar, a da Gulbenkian. A primeira vez que serviram bife à café era intragável, tinham despejado no prato a bica que só queria no fim da refeição. Protestei e a amável superintendente foi buscar a ficha da receita, do supervisor-mor da cantina. Lá estava, é verdade, "para cada pessoa, juntar ao molho uma colher de sopa (!) de café em pó". E quem era esse supervisor, conselheiro? Mestre Silva.
Também hoje, na Pública, se opina sobre os segredos da Trindade, e claro que sobre o seu molho de bife:
“Há quem diga que o segredo está no molho, que pode ser confeccionado com manteiga, leite, café (diz-se que de cevada), mostarda e uma pitada de farinha (talvez, até, Maizena). Assim, simplesmente, tal foi o resultado de uma busca instantânea na Internet que descreve o molho à Trindade (ou à Portugália) como uma cama fofa para os bifes de alcatra, vazia e lombo, estes feitos sela para o ovo estrelado, tendo as batatas fritas como acólitos de guarnição.”
Dou de barato a questão das carnes. Não faço bife de alcatra, mas não critico por isso o jornalista, não se pode saber de tudo. Mas esquecer o pojadouro como carne tradicional de bife lisboeta é não ter feito bem o trabalho de casa. Aquela dúvida entre farinha e maizena também é mesmo metafísica... A tal busca na internet deve mesmo ter sido instantânea. "Assim se fazem as cousas", hoje, na comunicação social

Mas vamos ao café. O requinte da cevada torce-me de riso! Café no molho de bife é coisa pateta, da mais ignara pseudo-grastronomia. Há muitas variantes do molho à café, como disse, rivais. Mas a regra base está bem descrita por Olleboma e por Maria de Lourdes Modesto. Sendo dela o livro mais conhecido, reproduzo:
À manteiga ou margarina da fritura, “adiciona-se a restante manteiga e o leite frio, onde se desfez a fécula e deixa-se cozer mais ou menos, conforme o gosto. Durante este tempo, agita-se a frigideira constantemente para que o molho não engrosse. Junta-se um fio de sumo de limão e a mostarda.” Nada mais simples, a permitir os tais segredos de condimentos e de técnica. Mas café, meus senhores?!
Falei de técnica. Neste caso, como em tantos, é metade do segredo. O molho não é nada sem a devida confeção e tempero do próprio bife, do desglaciar da gordura de fritar e do seu fundo (truque meu: rejeitar a gordura de fritar, sem levar os sucos, flamejar com um pouco de aguardente, desglaciar bem com um pouco de água e continuar com a preparação do molho). Há tempos, fiquei sentado com vista para a cozinha de onde saiam os “afamados” bifes. Numa chapa, grelhava-se o bife, com meio centímetro de espessura. Noutra “estrelava-se” o ovo. Ao lado, uma grande tigela com molho pré-fabricado. Para servir, sacava-se de uma frigideira de barro, que não tinha nada a ver com a história, bife, ovo por cima, batata congelada frita, uma colherada do tal “molho”. Que seja assim ao balcão dos Portugália de centro comercial, aceito e até como em termos de preço-qualidade e com filosofia de "fast food", mas num dos tais restaurantes especializados em bifes, de que falo logo a seguir?
Já agora, por experiências recentes, acho que se mantém bom, mas mais deslavado, o molho da Portugália, principalmente sobre o seu “bife à inglesa”; bom mas sem nada de marcante, o da Trindade; melhor talvez o da Lusitânia, a ir para muito bom; renascido, a obrigar-me a nova visita, o do Império libertado da seita; claramente decadente, "fast food" (mas só lá fui uma vez, recentemente) o do Relento. Ao Nicola já não vou há muito tempo. E se, como disse, reina a rivalidade, desculpem lá mas o meu fica só para amigos do peito. Alternando nessas cervejadas com o Marrare e o regional micaelense.


P. S. (18.1.2011) - Diz-me o meu alter ego gastronómico que já viu, mas não tinha presente de memória, uma receita de um cozinheiro francês de turnedó com molho de café e até enfeitado com alguns grãos de café. Fui procurar nos meus livros e na net e não encontrei. Escrevo isto antecipando alguma crítica com este argumento. Nada tenho contra uma criação deste tipo, embora eu não goste. O que não justifica é a sua transferência, se por acaso assim foi por via de algum emigrante, para uma tradição portuguesa que lhe é alheia. Diferente são pratos de carne de raiz centro-americana com cacau. Nunca fiz, mas as referências que tenho, de bons livros, parecem-me genuínas.

Quem gosta de ser gozado?

Vou ler de trás para diante a coluna habitual de David Lopes Ramos, hoje, no Público. Entenda-se que não é a ele que dirijo o essencial desta crítica, mas sim a um chefe considerado, Ljubomir Stanisic, o das 100 maneiras. Comecemos pelo essencial da receita, um vinagre temperado. Pica legumes variados - chalotas, tomate, pimento vermelho - mais maçã e uvas, salsa, cebolinho, mistura com azeite e vinagre de Jerez (tem de ser de Jerez?) - duas vezes mais vinagre do que azeite - tempera com sal e pimenta. Nada mal, apesar de vulgar, é um molho forte, rústico, a ir bem, por exemplo, com lascas de bacalhau cru, com fígado grelhado, com peixe frito, com ovas ou polvo.
Claro que o chefe não vai em coisa tão banal. Este molho serve para regar ostras grelhadas! Porque não trufas brancas salteadas? Ou fatias de tutano ou moleja cozidos simples?
DLR ficou embaraçado ao tentar cumprir o seu hábito nestas pequenas colunas de fim de semana: que vinho? Também eu ficaria, mas, como tenho escrito em relação a coisas tão avinagradas, água, uma boa água.
E volto atrás: tem de ser vinagre de Jerez? Claro que sim, porque, como escreve DLR, o chefe ex-jugoslavo (escrevo assim porque desconheço a sua atual nacionalidade) tem uma parceria com a entidade representativa do vinagre de Jerez.

Isto faz-me lembrar um livro de Michel, já velho de mais de uma dúzia de anos, que, em cada receita, em relação ao vinho da própria cozedura, da receita (não do vinho a acompanhar, o que seria correto), pormenorizava o produtor, a marca e o ano.
Voltando às ostras, minha delícia, pode-se ser tentado por molhos recomendados pelos clássicos, mas sempre molhos muito suaves - nunca esta barbaridade avinagrada -, à americana, à florentina, Mornay, de caviar, Villeroy. Mas, para meu gosto, ainda está para nascer quem mas faça melhor do que cruas, à temperatura certa da sua cama de gelo picado e só com um toque de manteiga derretida e clarificada e sumo de limão, misturados na sua própria água. Ou pura e simplesmente nessa água, sem mais nada.

Novamente, peixe cozido ao vapor

Escrevi há tempos que tinha comido em Sesimbra, no Ribamar, um excelente robalo (do mar, claro) cozido ao vapor. Lembrei também que é coisa que faço com frequência, variando muitas vezes e, por isto, em resultado de experiência deste fim de semana, vale a pena passar a registo uma das muitas receitas possíveis.
Já escrevi várias, mas esta refeição, em parte com a lembrança do tal bom restaurante, tem novidades. Para além dos vários legumes do caldo (“court bouillon”) com poejo a destacar-se moderadamente no sabor, o peixe é coberto com uma juliana muito fina, de cores contrastantes, de alho francês, cenoura e pimento vermelho. O caldo da cozedura a vapor, muito concentrado, coado e bem diluído em partes diferentes com um caldo muito simples feito com a cabeça do peixe, só temperado com sal e pimenta branca, dá um molho engrossado com ovo e também uma sopa a aconchegar o fim da refeição, com tempero extra de coisa extra de qualidade que é a hortelã da ribeira.
Usei, para duas pessoas e uma peixeira habitual, uma abrótea de 1 kg. Não é a abrótea da minha terra, mas quem não tem cão caça com gato. Era boa, lascava firme. A juliana estava no ponto, até porque só a tinha juntado ao peixe uns minutos antes do fim. O molho provou. O problema - que teria sido mesmo problema se tivesse sido jantar para amigos apreciadores - foi que as batatas simplesmente cozidas foram para o lixo, sabendo mal, a terra ou estrume, não sei bem. Eram as clássicas Monalisa. Hoje abri um novo pacote e estavam perfeitas. Acontece, mas um cozinheiro deve estar preparado para isto. Antes para o lixo do que estragar uma boa combinação de prato. Infelizmente, não se encontram frequentemente as melhores batatas para cozer, ariá.
Ainda outra nota negativa. Só uma vez provei uma sopa de peixe com hortelã da ribeira, feita por António Bravo, em Évora, então no Liz, agora no BL Lounge. Foi ele que me mandou um bom ramo da erva. Sem experiência, saiu-me um pouco forte. Vou seguir a dica do meu irmão D, para uso de ervas que não se domina bem: fazer uma infusão bem concentrada e ir acrescentando aos poucos à sopa ou ao molho, provando.

Para a receita em pormenor, ver a minha página de receitas.

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Alcaparras no molho tártaro?

Na sua última crítica no Expresso, queixa-se José Quitério de lhe terem servido molho tártaro a “que faltavam as queridas alcaparras”. Tem e não tem razão e serve-me de ensejo para alguma reflexão sobre a evolução de normas consagradas, com vulgarização, quase normalização, de alterações espúrias. Não sou conservador fanático, mas creio que se deve manter, embora com flexibilidade, um mínimo de regras, principalmente quando as modificações interferem com a clareza e distinção entre receitas diferentes, igualmente consagradas, confundindo o consumidor. Talvez esta minha nota traduza um grande apreço pelos molhos por parte de quem lhes dedicou todo um capítulo no livro “O Gosto de Bem Comer”.
Vamos então ao tártaro. Leva e não leva alcaparras, conforme o ponto de vista. Original e tradicionalmente não e já o tenho comido em muito bons restaurantes, de cozinha de autor, em que ele é feito à antiga, provavelmente a merecer crítica se Quitério lá for. Mas se à moderna, vulgar hoje principalmente em receitas correntes e em restaurantes pouco rigorosos, a variedade é enorme e não me parece justo, a não ser por gosto pessoal, destacar as alcaparras. Vendo tudo o que vai pela net, lendo livros mais “populares”, provando o molho em muitos outros restaurantes (e cantinas…), quase que de comum é só o basear-se em maionese. Mesmo assim, com variantes, porque se vê como maionese vulgar ou, tradicionalmente e segundo os clássicos, com uma espécie de maionese feita com gema cozida. De resto, leva tudo e mais alguma coisa, alcaparras, “cornichons”, cebola picada, picles, ervas variadas, até já vi azeitonas picadas e molho inglês, iogurte e mesmo rabanete ralado!
Mas já alguns “chefes” mediáticos que hoje fazem regra, como Jamie Oliver ou Hugh Fearnley-Whittingstall (não estou a dizer que os aprecio!) limitam-se, classicamente, ao cebolinho ou à cebola de rama. Outro moderno, não francês, de que gosto muito mais, James Peterson, também distingue bem três molhos diferentes, hoje confundidos num “tártaro” de mistura.
É a “fusão” de pelo menos esses tais três molhos consagrados, o gribiche, o tártaro e o remoulade. Se o leitor “googlar” com qualquer destas chaves, vai ver que, de muitas dezenas de receitas de qualquer deles não consegue tirar uma definição distintiva. Hoje, na prática, estão uniformizados e parece-me que com claro domínio da designação tártaro.
Há diversos molhos com base em maionese, com gema crua ou cozida. Vou referir apenas os tais três, esquecendo agora outros bem conhecidos. Omito, portanto, o aïoli (emulsão de alho em azeite, que originalmente nem gema de ovo levava), o Cambridge (maionese com anchovas esmagadas com alcaparras e temperada com as três “ervas finas” - salsa, estragão e cerefólio), o bem conhecido molho cocktail (com maionese, natas, ketchup, molho inglês, álcoois, etc.), o molho verde (maionese misturada com puré de espinafres ou agrião) e a sua variante Vincent (com ovo cozido picado).
Tradicionalmente, segundo a boa codificação da cozinha francesa - em que o respeito pelas designações tradicionais ainda hoje se mantém vivo - o molho tártaro, tal como descrito por Escoffier, por exemplo, é uma maionese feita com gema cozida e adicionada de cebolinho picado e, opcionalmente, de rama de cebola picada e pisada em puré. Só isto. É também a receita ainda hoje publicada no Larousse Gastronomique. Com alcaparras, “cornichons”, clara de ovo cozida e picada e “ervas finas” temos o molho gribiche. Semelhante, mas maionese de gema crua também com alcaparras mais “cornichons” picados e ervas a gosto é o “remoulade”. Tudo junto é essa coisa indefinida tártaro-gribiche-remoulade, vulgarizada hoje como tártaro.

Concluindo e voltando a Quitério, dou-lhe razão se a sua atitude for a de aceitação da evolução dos usos culinários e gastronómicos, embora frequentemente lhe veja, e bem, sinais de maior rigor. Não lhe dou razão quando define a seu modo um “tártaro” que ainda não está hoje entendido sem ser uma coisa eclética e ambígua. Mais, quando isto condena à morte por confusão outros molhos igualmente respeitáveis e com individualidade marcada. Gribiche e remoulade, molhos que um gastrónomo com os pergaminhos de Quitério certamente conhece, no seu bê-à-bá de muitos anos de crítica culinária, embora não sendo cozinheiro nem tendo de o ser.

Quitério gosta de alcaparras no tártaro e está no seu direito, quando a noção deste molho está em evolução. O que não pode é usar esse gosto particular para criticar um restaurante que, se calhar, lhe estava a servir um genuíno molho tártaro. Não é a primeira vez que Quitério se deixa levar, como crítico, pelo Quitério subjetivo que tem direito ao seu gosto pessoal.

P. S. - Por coisa elementar de cortesia e de abertura ao debate, tentei ao máximo contatar José Quitério, para lhe dar a conhecer este texto e lhe propiciar resposta. Não consegui. O seu blogue no Expresso não tem endereço de correio e não permite comentários. Dizem-me que ele não tem computador e não acede nunca à net. Embora seja coisa bizarra para quem hoje comunica, está no seu direito, não posso fazer mais nada. Mas ninguém no Expresso o convence de que já fica mal tão anacrónica sobranceria? Que quem opina e quem critica tem o dever de se sujeitar à contra-crítica? O tempo dos venerandos budas já passou.

P. S. 2 - Como é que me esqueci de um quarto molho, sem nome, que vem da minha meninice e ainda hoje faço tão frequentemente? Aprendi-o com o meu pai, que era cozinheiro só de duas ou três coisas, mas esmerado nessas coisas poucas mas importantes. Com peixes, bacalhau ou conservas, vindo o ovo cozido, separava a gema e a clara. A primeira era muito bem esmagada com uma colher de vinagre, malagueta, açaflor e um pouco de mostarda. Batia bem, mesmo no prato, com o garfo, com azeite. Juntava-se depois a clara cozida, picada. Hoje também acrescento salsa picada, pimenta preta e um toque de pimenta da Jamaica.

sábado, 8 de janeiro de 2011

Receita literária (camarões dos dias do fim)




É vulgar encontrarmos na nossa literatura, basta ler Eça, descrições saboridas de repastos, desde os ovos com linguiça da tasca do Ramires até ao esmerado jantar que o João da Ega oferece ao Cohen, com a pior das intenções. O que não tinha encontrado até agora, se não estou em erro (esquecendo porventura algum exemplo de Jorge Amado), é receita por inteiro em página de romance. Nem têm nome, os camarões assados que Ricardo de Saavedra descreve em “Os dias do fim”.

São marinados com azeite, sumo de limão e cebola, depois grelhados e brevemente assados no forno com a marinada entretanto apurada. Como não sei quem é o autor da receita, nem o livro o revela, permito-me modificá-la, embora, por homenagem a um autor desconhecido, chamando-os de camarões dos dias do fim.
Para 4 pessoas. 1,5 kg de camarão tamanho 20/30, 2 cebolas, 1 cabeça grande de alho, 2 dl de azeite para a marinada, 5 limões, sal grosso, 1 folha grande de louro, piripiri a gosto. 3 c. sopa de azeite, 1 cálice de aguardente, 1 c. café de gengibre ralado ou em pó, ½-1 c. café de açaflor, 4 c. sopa de leite de coco, 1 raminho de coentros.
Cortar as cascas dos camarões pelo dorso e remover a tripa verde. Numa caixa com tampa, envolvê-los bem com o sal, piripiri, o alho picado grosso e o sumo de limão. Cobrir com a cebola às rodelas finas e regar com o azeite. Tapar e deixar no frigorífico para o dia seguinte.
Escorrer os camarões e grelhar, de um lado e outro, em chapa bem quente. Reservá-los e desglaciar o fundo com um pouco de água.
Aquecer o resto do azeite e alourar a cebola da marinada, escorrida. Flamejar com a aguardente e juntar o resto do líquido, com o alho mas sem o louro, mais uma c. chá do desglaciado. Temperar, juntar o leite de coco e deixar apurar, a lume médio, sem deixar secar demais o molho. Depois de apagar o lume, juntar os coentros picados.
Colocar os camarões numa assadeira, regar com o molho e levar ao forno pré-aquecido a 150º, durante 15 minutos.
Acompanhar com batatas secas (ideia de DVC, a quem fica aqui registado o agradecimento). Cortar as batatas em lâminas finas, com mandolina, e deixar duas horas em água com sal e temperos a gosto (ervas, especiarias, molhos fortes, etc.). Escorrer muito bem sobre um pano e dispor em uma camada num prato para ir ao micro-ondas, em potência máxima, durante 2 minutos. Abrir a porta para “refrescar” e aquecer mais 2 minutos, de preferência virando as lâminas de batata.

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

Alcatra a fazer no continente

Retomo a escrita neste blogue com pretexto no almoço de Ano Novo, ano que não promete muito mas que ao menos traz uma boa notícia para os continentais apreciadores de alcatra. Várias vezes escrevi que a principal limitação à confeção no continente da alcatra terceirense, cada vez mais conhecida e apreciada (mesmo que de qualidade pouco requintada) pelos visitantes das minhas ilhas, era a falta do típico alguidar. É mesmo indispensável, pasmando eu por ainda hoje ter ouvido que alguém a fez numa panela de pressão e que “ficou muito boa”! O alguidar de alcatra não é uma bizarria ou um mito. O seu tratamento prévio, a patina, a forma a fazer confeção interna do calor, a dimensão em relação à quantidade de carne, para a poder ir virando, tudo isto faz o segredo de uma boa alcatra.
E já há cá o alguidar, até numa capacidade mais conveniente para quem não fizer alcatra para uma dúzia de convidados. Vende-se no Espaço Açores, na R. S. Julião, 58, em Lisboa. É um alguidar de 1,5 l, metade do tradicional, que dá bem para uma refeição de quatro pessoas. Tem de ser tratado antes de usado pela primeira vez: deixar uma semana, com duas mudas, cheio com uma infusão de água com 1 cebola aos quartos, 6 dentes de alho esmagados, 2 folhas de louro e um ramo de hortelã.
A receita é essencialmente a que tenho já descrito e que vem no meu livro “O gosto de bem comer” (pág. 312), mas há que fazer algumas alterações, condicionadas pela menor dimensão do alguidar.
Desde logo, a redução a metade da quantidade dos ingredientes: 700 g de folha de alcatra, 300 g de aba grossa, 1 cebola grande, 2 dentes de alho, 3 c. sopa de manteiga, 1 osso com tutano, 125 g de toucinho de fumo, 8 grãos de pimenta preta, 5 grãos de pimenta da Jamaica, 1 folha de louro, sal grosso q. b. , 4 dl de vinho branco.
Na alcatra em dose tradicional, a carne é cortada em pedaços grandes, de tal forma que, depois de pronta, ficam com cerca de 6 cm de lado. Para este alguidar pequeno, têm de ser um pouco mais pequenos, para se poder acamar e depois ir virando facilmente. Cortei, em cru, pedaços com cerca de 7 cm, que ficaram no fim com cerca de 4,5-5 cm. Não é o meu olho de menino, mas não vem mal ao mundo.
Outro problema é o osso, obrigatoriamente a fornecer bastante tutano à alcatra, osso que, despejado do tutano, se retira a meio. Um osso com bastante tutano é muito grande. Lembrei-me - e resultou bem - de comprar uma fatia de osso buco e começar por cozê-la durante alguns minutos, só o suficiente para remover facilmente a carne, que fica para outros usos. O osso tem a dimensão adequada a este alguidar pequeno e tem muito tutano.
Não esquecer que a quantidade que indico é para o verdadeiro e antigo toucinho de fumo, que já não consigo encontrar. Desde há anos que os meus irmãos e eu usamos bacon, como hoje na Terceira. Mas com um pormenor muito importante. O bacon, ao contrário do toucinho fumado, tem carne, que dá um sabor demasiadamente forte à alcatra. Por isto - que desperdício - só usamos a gordura do bacon e o peso (100 g) refere-se é a esta gordura. Para esta minha alcatra, encontrei uma coisa ótima, que não conhecia: barriga fumada. Tem muito menos carne e esta é mais suave. Usei toda a peça, carne incluída, 125 g.
Passo ao vinho. Como já tenho discutido milhentas vezes, é genuinamente tradicional usar o vinho de cheiro, como na generalidade dos restaurantes rústicos terceirenses. Assim se habituou o povo quando a filoxera fez produto caro e raro do vinho branco, quer o local, verdelho, dos Biscoitos, quer depois o importado. No entanto, não há comparação de requinte entre uma alcatra com vinho branco e com vinho de cheiro. O problema era encontrar cá o Biscoitos. Por isto, fazia a alcatra com um vinho também tradicional dos Açores, o arinto, como um Bucelas, acrescentando por vezes um pouco de generoso meio-seco. Agora, também já podem comprar cá Biscoitos - Donatário - na Loja Açores (Av. Elias Garcia, 57, Lisboa).
Finalmente, os truques de boa técnica: 1. Forno bem pré-aquecido a 200º (se a gás, um pouco abaixo da chama máxima). 2. O osso no fundo, camadas alternadas de carne, cebola, alho, manteiga, temperos, sendo a última só de carne, tudo bem acamado. 3. Ao princípio, 3 dl de vinho e água a cobrir; cerca de uma hora depois, o resto do vinho e mais um pouco de água, dando a primeira volta às carnes. 4. Voltar a carne de 30 em 30 minutos (vá lá 45) ou quando se vê que começa a crestar à superfície. 5. Ir acrescentando só água, para manter o nível adequado de molho (não se pode descrever, só tendo prática, mas diria que a um nível de cerca de 1-1,5 cm abaixo da superfície da primeira camada de carne). 6. Ao fim de cerca de 2 horas, remover o osso, deixando o tutano.
Quanto tempo? Depende do forno e só se sabe olhando para o crestado da carne e para o molho, que deve estar apurado mas ainda com a manteiga bem emulsionada em líquido aquoso. Na Terceira, nos impérios, é costume cozer primeiro o pão e depois usar o forno ainda muito quente para a alcatra, mexendo-a com frequência, como disse. Ao fim de algumas horas, a alcatra está quase pronta, o forno já está a arrefecer e a alcatra apura até ao dia seguinte. 
Em casa, reproduzo mais ou menos este processo. No caso desta mini-alcatra, assei-a a 200º, como disse, cerca de 4 horas (no alguidar grande pode ir quase às 6 horas), desliguei o forno sem o abrir, e deixei lá o alguidar mais uma hora. Abri o forno e deixei arrefecer. No dia seguinte, compensei com mais água o molho que se tinha reduzido um pouco e aqueci a 150º durante cerca de 1 hora, acrescentando um pouco de água quando necessário.
Comemos à boa maneira, só carne e molho, molhando malcriadamente pedaços de pão rústico. Servir como agora é moda sobre fatias de massa sovada não me calha. Adoçica o molho e desfaz-se. Porque é que quem inventa modernices contra a tradição não tem técnica para tal? É que qualquer bom cozinheiro sabe que inventar de novo é fácil, modificar mantendo o essencial das coisas é que é difícil.