domingo, 23 de janeiro de 2011

Mão de vaca gratinada, da minha família

Ao prometer uma receita semanal, disse que tanto podiam ser de minha invenção como de património familiar. Para começar, julgo que devo dar primazia a este património, não só por valor estimativo mas principalmente pela razão prosaica de me ter caído sob os olhos, no talho, uma coisa que me apeteceu e que sabia que ia deliciar a morena. 

A divulgação do património culinário familiar é coisa relativamente recente e conheço quem ainda não o faça, com a noção enraizada do "segredo de família". Foi coisa resolvida na minha, ainda com o peso da opinião da minha mãe, quando publiquei o meu livro "O gosto de bem comer", que já incluía bom número desses "segredos". Entendemos que a melhor homenagem a quem foi construindo essa herança, ao longo de gerações, era dá-la a conhecer. Ainda por cima, ficando para nós a última palavra, no sentido de que, em muitos casos, não basta a receita, é preciso a pedra de toque do sabor de infância e a experiência antiga de saber fazer, por muito ter visto fazer.
Começo por uma mão de vaca única, que nem sei bem como chamar. Gratinada, como vai em título, talvez seja o melhor adjetivo, porque é a única que conheço que vai ao forno. Não sei porquê, em miúdo detestava este prato tradicional de família, que hoje me delicia as papilas gustativas. É receita estranha, do meu património familiar terceirense, mas sem raízes facilmente identificáveis, a não ser em coisas francesas ou de cozinha internacional de hotel que o trisavô patriarca levava com vestidos e rendas, de volta da visita à civilização, ao arribar ao Cabo da Praia. Neste caso, nem posso invocar uma óbvia origem francesa: das oito receitas de mão de vaca de Escoffier, mais a do Larousse, mais algumas de "sites" franceses de boa qualidade, nenhuma se assemelha a esta.
Não lhe encontro parentesco nas recolhas de cozinha tradicional da Terceira nem em registos de cozinha continental. Nos Açores, mão de vaca é um guisado com batatas, num caso recolhido juntando ervilhas; no continente com feijão ou com grão (diferença que se prolonga para a dobrada, no continente com feijão, nos Açores com batata). E esta mão de vaca vai ter continuação, dessa vez em receita minha, embora com base clássica. Que fazer com o resto, abundante, da geleia de carne? Esperem pela minha galantina, feita hoje mas descrita só para a semana.
Para 4 pessoas. 2 mãos de vaca, cerca de 2,5 kg, de preferência dianteiras (opcionalmente 3 de vitela, mas tendo de se ajustar os tempos de cozedura, por se desfazerem mais facilmente), 1 cebola, 2-3 dentes de alho, 1 folha de louro, sal, 8 grãos de pimenta preta, 5 grãos de pimenta da Jamaica, 1 folha de louro, um raminho de salsa. Para o guisado, 3 c. sopa de manteiga (mais correto, hoje, de margarina dietética), 1 cebola, 2 dentes de alho, 1 c. sopa de polpa de tomate ou 1 c. chá de concentrado de tomate, 1 raminho de salsa, sal, tomilho, 8 grãos de pimenta preta, 6 grãos de pimenta da Jamaica, 3 limões galegos (na falta, 1 limão, 1 lima e meia laranja). Tosta ralada.
Em panela de pressão (contra a tradição, mas conservadorismo exagerado é burrice), colocar as mãos e os temperos da cozedura, cobrir com água e cozer durante 30-40 minutos. Remover as mãos e cortar em pedaços de cerca de 3-4 cm de lado. Coar o caldo e reservar. Refogar a cebola picada muito fino, mesmo pisada a fazer pasta, com o alho. Quando alourada, juntar o tomate e os temperos e dar mais algumas voltas, acrescentando depois os pedaços de mão de vaca. Voltear bem, demoradamente, até a pele ficar bem alourada. Acrescentar caldo, sem ficar muito aguado e deixar apurar. Se necessário, ir acrescentando mais uns goles. No fim, juntar o sumo de limão galego.
Passar para assadeira não untada (o molho não permite mais gordura) e polvilhar com tosta ralada. Levar ao forno a 200º, até bem gratinado. Na tradição de família, acompanha-se com puré de batata com azeitonas e com fatias de pão frito. Também fica muito bom com uma coroa de puré, consistente, na assadeira, regada com caldo da mão de vaca e também polvilhada com tosta ralada.

1 comentário:

  1. Já vou nos 55 e só aos 54 tomei coragem para experimentar a mão de vaca, meu paradigma do horror em matéria alimentar. De tal sorte, que sendo a casa dos meus pais pouco dada a liberalidades e dispensas à sagrada hora da refeição familiar, a única exceção admitida era precisamente no dia do terrível (para mim) prato, em que eu era autorizado a comer qualquer outra coisa, na cozinha, pois só a vista do tremeluzente molho me provocava um incoercível vómito.
    Após semanas de preparação mental, já com a dita no congelador, à espera, lá a fiz e experimentei e posso agora dizer que já sei do que falo. A mão de vaca era a única coisa de que eu dizia não gostar sem nunca ter provado; agora já sei!

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