terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Cozido à portuguesa

Vale a pena escrever sobre coisa tão banal como o cozido à portuguesa? 1. Desde logo, quase toda a gente gosta de cozido mas não o faz, por razões bem conhecidas que abordarei a seguir. 2. Depois, não é assim tão banal, merece respeito técnico. 3. Ainda depois, não faz mal nenhum fazer pensar um pouco ou dar algumas informações sobre coisa tão velha e icónica da nossa (?) cozinha.
1. Cozido era coisa de grande refeição de família. É impossível fazê-lo para duas pessoas, nem mesmo para quatro. Claro que se pode fazê-lo para jantarada de amigos (melhor, almoçarada) mas passou de moda, injustamente. Eu próprio, com exceção de uma ou outra vez de demonstração da brincadeira (enfim…) do cozido das Furnas feito em casa, há anos que, até este último fim de semana, não fazia um cozido. Mesmo reduzindo ao mínimo as quantidades, fiquei com cozido, sopa, roupa velha para toda a semana e ainda há-de restar com que inventar alguma coisa antes de bolorarem os restos. Mas dizia que o deixar de se fazer em casa não significa que o cozido tenha perdido popularidade. Veja-se o sucesso do “dia de cozido” de muitos restaurantes familiares.
2. Passemos à técnica. Velha regra, indiscutível, é que o princípio do princípio de um cozido é a qualidade dos ingredientes. Obviamente, começa pela carne. Creio que muitas pessoas têm pouca experiência de decisão sobre a peça de carne que usam nos seus cozinhados. Vão ao talho e pedem bife, carne de assar, de cozer, de guisar. Não tem mal, o talhante sabe. Para o cozido, mestre Olleboma preconiza carne de primeira qualidade, ganso redondo. Já experimentei mas acho que fica um pouco seca e que a relação preço/qualidade não justifica. Eu gosto de uma outra carne de 1ª, a maçã do peito, que dá pedaços limpos, com muito bom aspeto final e um caldo suculento. Muitos talhos sugerem carnes de 2ª ou 3ª, como prego do peito, cachaço, chambão ou pá. Eu sugiro também, como usei há dias por falta da minha preferida, as abas, principalmente a grossa, mas aceitavelmente a delgada ou da costela. De porco, compro pá, toucinho com carne ou entremeada e chispe (deixados de véspera com sal grosso, bem limpo na altura de cozer). Não gosto de orelha e não se usa na minha terra. De frango, uso só coxas, porque hoje se vendem separadamente e acho que é o que vai melhor no cozido (mas é questão de gosto pessoal). Enchidos, claro que de grande qualidade, dos que já conheço previamente.
Talvez menos cuidada hoje, mas no uso das nossas avós, é a cozedura separada, coisa que duvido muito que se faça no “hoje há cozido”. Nem vem em boas recolhas de cozinha tradicional. Cozido são quatro panelas! Cozedura mais demorada - sem mal nenhum, hoje à pressão, cerca de uma hora - só as carnes, em água com sal e pimenta (nos Açores, como faço, com mais tempero, como direi adiante). No fim, juntar os tubérculos (batata, nabo, cenoura, batata doce) e acabar de cozer. Segunda panela a dos enchidos, só em água, sem sal. Terceira a das hortaliças, em duas vezes (não é regra tradicional, mas faço-a como técnica básica de boa cozinha). Água já a ferver, hortaliças a escaldar em lume alto, 1 minuto. Rejeitar a água e passar as folhas por água fria, depois escorrer. Voltam a cozer em nova água, com um pouco de sal, em lume alto, com a panela destapada, a manter bem vivas as cores. Quarta panela, melhor um tacho, para o arroz, de que falaremos depois.

Não há mal em outra possibilidade, como Maria de Lourdes Modesto descreve nos cozidos transdurianos, a da cozedura sequencial na mesma panela, retirando carnes já cozidas e acrescentando outras coisas. Claro que é maneira tradicional, quando só havia uma panela ao lume da lareira. A técnica das panelas diferentes tem uma grande vantagem, a do caldo final de bom gosto. Reservam-se, separadamente, as três águas de cozedura. O caldo final é a sua mistura, em doses equilibradas e a gosto. Para mim, carnes:enchidos:hortaliças em proporção de cerca de 6:2:1.
3. Tudo isto é sobre o “cozido à portuguesa”? É coisa que não existe. Há um cozido europeu, para não dizer mundial, e há muitos cozidos provinciais portugueses. Definir o que é, a nível intermédio, o “cozido à portuguesa” não é fácil. Cozer simplesmente carnes e produtos da horta, o que há à mão, é coisa milenar e, por estes lados europeus, com registo histórico na cozinha romana e bárbara e, na Europa que conhecemos, com coisas tão próximas de nós como a “olla podrida” espanhola (com tantas variantes regionais como cá), o “pot au feu” francês, os cozidos italianos da Toscânia e da Ligúria, entre outros, até os cozidos magrebinos de borrego com legumes, hortaliças e hortelã.
Por outro lado, “zooming in” para Portugal, quantos cozidos, claro que com forte matriz comum, mas com a variação inevitável que decorre da essência do cozido: é feito com aquilo que, do talho ao fumeiro e à horta, faz parte do uso regional. Alguns ingredientes respeitosamente referidos por clássicos como Olleboma até nos podem parecer hoje bizarros, porque caídos em desuso: feijão verde, abóbora (gosto e às vezes uso, mas não me parece habitual), brócolos, ervilhas, miúdos de galinha, pombo.
Outros ingredientes caracterizam as variantes regionais. Desde logo os enchidos, que não vou comentar, tão conhecida que é a distribuição regional dos nossos enchidos. Também casos típicos de diferenciação, como o uso de rabas em Trás-os-Montes, de morcela na Beira e nos Açores, de feijão branco no Ribatejo ou na Estremadura, ou de grão no Alentejo e no Algarve. Afinal, talvez se possa dizer que há um cozido à portuguesa: o de cada um, aquele que cada família faz com misturas personalizadas de todos estes ingredientes, a gosto. Um gosta de meter salpicão, outro presunto, outro orelheira, outro farinheira, outro batata doce, até a luso-tropical mandioca (porque não?), etc. Carnes, enchidos, legumes, hortaliças, sabores naturais com quase nada de tempero extra, é a definição. Desde que não se junte cogumelos, peixe, polvo ou camarão, tudo bem. E a variedade até é um elemento de desafio ao visitante bom gastrónomo para provar muito e decidir voltar a casa com a "sua" receita de cozido.
O cozido que me habituei a fazer é fundamentalmente o cozido que me habituei a comer, o de S. Miguel. É relativamente simples: carne de vaca e de porco, chispe (chanco, como lá se diz), toucinho, galinha, linguiça, morcela, chouriça moura, batata (inglesa, como lá se diz, porque batata tout court é a doce), batata doce (saliento, porque já há cá e eu não consigo comer cozido sem batata doce), nabo (não obrigatoriamente), cenoura, couve e repolho açoriano (cá o repolho pequeno fechado, não a couve lombarda). Além do sal, tempera-se também com pimenta preta e pimenta da Jamaica (na Terceira), e quem gosta - como eu - também com um raminho pequeno de hortelã, que em alternativa pode ficar só para a sopa. Como não sou fundamentalista intransigente, incluí desta vez, a pedido insistente de gosto especial mas sem eu comer, farinheira. Pela mesma razão, porque gosto muito e me evoca a meninice, junto para mim coisa que, apesar de tão usada nos Açores, não entra no seu cozido, o inhame.
A outra grande variante, pelo que aí se vê, mas não segundo a tradição, é o arroz. Se não me engano, ao ver o cozido nos restaurantes, o que noto é arroz cozido com tempero do caldo, quando não simples arroz branco cozido. Cozido em caldo, a ficar solto, é o uso estremenho e meridional, mas no norte usa-se o arroz de substância, refogado, com carnes, molhado em caldo e acabado no forno. 
O agora cozido famoso das caldeiras das Furnas, em S. Miguel, não levava arroz. Um dos restaurantes que o faz serve arroz branco, a pedido. Outro, serve por rotina. Nem pode deixar de ser arroz branco, porque o cozido das Furnas não tem caldo. É melhor que o sirvam branco do que com cubo Knorr. Já o cozido tradicional micaelense, em panela, é acompanhado obrigatoriamente com um arroz único, o “arroz vermelho” ou “arroz de carne”, o que eu faço. Tem como base um refogado de cebola e alho em banha (hoje, dieteticamente, azeite) que se “ferra” no fim com um gole de vinagre e um pouco de concentrado de tomate, colorau, sal e massa de malagueta. Junta-se o arroz carolino (eu salteio-o um pouco) e o caldo, um raminho de hortelã e deixa-se cozer. Como se vê, mistura o hábito do Sul e do Norte. É refogado e bem temperado, mas não leva carnes nem vai ao forno.

P. S. (30 de Abril de 2011) - Postumamente, dedico esta entrada a David Lopes Ramos, recordando as muitas mensagens que trocámos sobre isto.

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