segunda-feira, 14 de março de 2011

Cozinha angolana

A minha reserva, talvez por desconhecimento, em relação à cozinha de moçambicanos contrasta com o meu fascínio pela cozinha angolana. Primeiro, por isto mesmo, por ser uma cozinha angolana, integrada, miscigenada, de pretos, mulatos e brancos, que se generalizou. Segundo, por ser uma cozinha muito simples, nos ingredientes e na técnica, estranhamente muito uniforme em tão grande país. Finalmente, porque aprendi a fazê-la quando por lá andei, mas por tentativa e recolha talvez nem sempre fidedigna, enquanto que agora tenho apoio seguro de grande cozinheira angolana - não é quem pensam, sem desmerecimento, é da geração anterior - com as tradições das “velhas famílias”. De tal forma que quem ma faz, e sabem quem (isto já começa a ficar confuso em gerações!), recorre sempre à opinião materna quando eu vou um pouco mais longe na inquirição da genuína cozinha angolana. 
No entanto, duas dessas afirmações devem ser moderadas. Primeiro, a cozinha angolana só era património geral até certa data, depois não. Angola colonial antiga baseou-se bastante numa miscigenação q. b., mas com reflexos práticos. Essas velhas famílias colonas, com gente da minha idade ainda 1-16-avos, são, culturalmente, fração muito maior em termos culturais, porque a memória e os costumes da trisavó preta foram sendo transmitidos até hoje e a memória gustativa é fantasticamente forte. Quando fui passar dois anos em Angola - "to hate or not to hate, that is the question" - foi com esses 8, 16, 32 avos que fiz grande amizade, porque eram genuinos, tinham raizes na história como eu ilhéu, raizes de aventureiros que não se ficaram pela pequenina courela minhota. Assim como a minha amizade pelo catequista protestante da Quilumba, pelo Alexandre do Quissacala, pelos “brancos” V, I, P, F, etc. 
Mas havia o outro lado, o do “batalhão Ferreira da Costa”, os que para lá tinham ido à ordem do “para Angola e em força”. Esses, que foram os primeiros racistas em Angola - porque sem lugar no mercado de trabalho a sobressair sobre os negros - desprezaram, ou melhor nem compreenderam, a cultura angolana e comiam, no "jardinzinho" só de cimento desbocado para a rua, em camisola interior sem mangas, "wife-beater", e com chapéu suado, feijoada à sua maneira transmontana regada com vinho tinto do “puto” misturado com 7up. Claro que também comiam às vezes "comida de preta", mas quanto a isto de comer preta, é melhor ficar por aqui...
Outra afirmação acima, a ser moderada. Como não podia deixar de ser em tão grande país, há diversidade mas, curiosamente, é mais na terminologia. É difícil discutir isto, na falta de documentação. Quando adiante escrever “há quem…” quero dizer uma família ou outra, branca, com gosto africano mas com grande sentido de liberdade em relação a costumes que julgam primitivos. Por isto, há muitas diferenças neste meu repositório em relação ao que vou chamar de HS. É um laborioso e muito estimável trabalho extenso de recolha de receitas de cozinha angolana por Henrique Silva, que não sei quem é, distribuída generosamente pela net, como apresentação PowerPoint, Receitas angolanas. Da sua grande lista, vou focar só as coisas que me dizem ser mais emblemáticas e, afinal, aquelas que eu faço ou que alguém me faz muito melhor do que eu faço.
Começo por coisa basilar. A cozinha angolana é uma enorme variação, subtil, de coisa muito básica de ingredientes e técnica. Cozinha de peixe fresco e seco ou de galinha, também cabrito selvagem, no mato zairense por onde andei, também a excelente capota (e mesmo, garanto, macaco). Mas raramente ou nunca de vaca ou de porco. Em geral, molhos ou caldos abundantes, com base em refogado de cebola no ubíquo óleo de palma. A mandioca sempre presente, em peça ou em papa de farinha (fuba) e água, o funge. Para fazer a farinha, fuba, apenas deixar secar a mandioca e ralar ou, à antiga, pisar no pilão. Mais corretamente, a mandioca é seca mas só depois de algum tempo em água, a destilar a goma. Com presença marcante, o tomate, em alguns casos a abóbora e, nas muambas, os quiabos. 
De muambas não vou falar, porque se encontram facilmente por aí. Ou melhor, só a de galinha, não a de peixe que, no Zaire da minha maravilha, até difere na inclusão de muita semente fresca de caju. Prato semelhante, em Luanda, é o funge de peixe, mas mais simples, sem quiabos. Em contrapartida, com um tempero estranho que não consigo identificar, uma erva chamada gimboa (alguém me diz o que é?).
Há dois tipos de pratos, na mais característica norma da cozinha, por todo o mundo, um mundo de pobres e de ricos: 1. os que se baseiam num acompanhamento ou base geral, simples e barata, que, quando se podia, levava a enriquecer algum peixe ou um resto de galinha. 2. depois, os pratos completos.
Nos primeiros, claro que sempre o funge, simples papa em água de qualquer “fuba” (farinha), normalmente de mandioca fresca, também de milho (em Angola, sempre milho branco! Funge de fuba de milho que, no interior kimbundo, se chama kindele) ou de bombó (mandioca seca). Depois, uma grande lista de pratos de base (feijão de óleo, quizaca, tarco, gimata, rolão), de que destaco o feijão de óleo de palma, "oh simple thing!", especialidade morena de cativa que me tem cativo, delícia palatar que maravilha os meus amigos que vêm ao cheiro e sabor dos meus petiscos micaelenses e que começam por apanhar com essa coisa simbólica de quem também aqui manda. E que depois dizem, "seu machista, só gabas os teus petiscos açorianos, mas aquele feijão..." Como disse, é uma base, que pode ser comida por si só, com peixe frito, com banana, com enchidos, etc. 
Feijão de óleo de palma
Ditado pela morena: para duas latas de feijão manteiga, 1 cebola média e meia lata de óleo de palma, 1 dente de alho picado e um tomate pequeno bem maduro, sal e picante a gosto. Refoga a cebola no azeite de palma durante pouco tempo, acrescenta o tomate cortado em pedaços pequenos, o alho e de seguida as latas de feijão. Acrescenta um pouco de água (costumo por a olho) de modo a que o molho fique consistente, o sal e o picante. Deixa ferver de modo a que o feijão fique bem cozido e o molho apurado. Ao servir, polvilha-se bem com farinha de mandioca, grossa e torrada.
Ressalvo que esta receita é uma versão rica do fazer popular muito mais simples. Na cozinha popular, o feijão é simplesmente cozido, envolvido com o óleo de palma, apurando com um pouco de água da cozedura e temperando. O feijão angolano mais tradicional é o amarelo, difícil de encontrar mesmo em Angola. Substitui-se bem por feijão manteiga.

Passo para coisa de que gosto muito, o pirão. É designação ambígua, cada um chama pirão ao que quer. Todas as minhas boas fontes, a começar pela que já disse que é a de minha maior confiança, definem pirão, o prato típico da Ilha do Cabo, como uma sopa de peixe fresco com mandioca cozida e acompanhada, ao lado, por farinha de pau torrada e embebida na gordura da sopa. No entanto, há quem lhe acrescente peixe seco, o que, como direi adiante, caracteriza outro prato, o muzonguê. Pior, há quem - mais recentemente e principalmente entre os angolanos já nascidos cá - chame de pirão o simples funge. Mais estranhamente, HS chama pirão a um funge de fuba de milho.
Pirão
4 peixes pequenos, tipo peixe galo ou redfish; 2 dl de óleo de palma; 2 batatas doces grandes; 1 mandioca; 2 cebolas ; 3-4 dentes de alho; 2-3 tomates maduros ou 1/2 lata; água (bastante, cerca de 1,5 litros); sal q. b.; gindungo (piripiri) q. b.; 300 g de farinha de pau grossa.
Refogar moderadamente a cebola e o alho no óleo de palma, acrescentar o tomate sem peles e sem sementes cortado aos bocados, acrescentar cerca de 1,5 l de água. Levantar fervura e juntar o peixe cortado em postas. Cozer, cerca de 15 minutos, sem deixar desfazer o peixe.
Separadamente, cozer a batata doce e a mandioca, aos pedaços, em caldo de peixe, escorrer e servir à parte.
Torrar a seco a farinha, num tacho e embeber com o sobrenadante gorduroso do caldo, sem ficar em papa.
Come-se o caldo, o peixe e os legumes, em prato de sopa, temperando com sumo de limão. A farinha é servida ao lado e vai-se comendo á colher, molhando na sopa.
Nota - Há duas pequenas variações nesta receita em relação ao tradicional, mas que acho que só a melhoram: adição de batata doce (ensinamento recente de boa cozinheira angolana à minha morena), e cozedura à parte da mandioca e da batata doce, questão de técnica.
Basta de receitas, mas justifica-se mais alguma conversa sobre a cozinha angolana. Este pirão é a base mais simples, luandense, para outras variantes. Uma é o muzonguê, da zona de Benguela, essencialmente o mesmo, mas com adição de peixe seco. Coisa que não se arranjava arranjava cá mas que podia muito bem ser substituída por caras de bacalhau. Hoje é fácil encontrar peixe seco, na Ribeira ou nas lojas de bacalhau da rua do Arsenal ou perto da P. Figueira. Conheço famílias de Benguela que incluem mandioca e batata doce no muzonguê, como no pirão luandense, outras que não.
Também há quem faça o muzonguê com funge em vez de farinha de mandioca embebida no caldo, como descrevi, e com folhas de hortaliça. Vamos por partes.
A sopa-refogado em óleo de palma, com peixe cozido, fresco e/ou seco, quando acompanhada por funge, é o calulu. Em Angola, é tipicamente um prato simples, de peixe previamente frito, sem legumes, mas com hortaliças ou ervas. Passou para S. Tomé, onde é hoje emblemático, variando em ingrediente de base - marisco, galinha - e com inclusão de todos os legumes à mão. Comi-o lá, excelente! E agora tenho cá a experiência prática, popular, da minha simpática empregada santomense.
Depois, a questão das hortaliças, outra confusão para quem quer recolher a cozinha angolana. Em pratos completos, cozidos, como o calulu, o que entra é a folha de batata doce, e, tanto quanto apurei, apenas no calulu. Não a temos cá e, talvez por isto, algumas receitas, como as de HS, indicam como hortaliça o espinafre. Não vou por aí. Habituado de criança a uma magnífica hortaliça cá não muito usada, aconselho a nabiça. Ou então, mas mais difícil de obter, o espinafre selvagem alentejano. Melhor ainda, mas ainda mais difícil, o excelentemente amargo agrião da terra, açoriano.
Diferente é o uso de outra folha, a de mandioca, a quizaca ou saka-saka. Novamente, discordância com HS, que chama quizaca a um banal esparregado de espinafres. Quizaca genuina, de folha de mandioca, pode-se comprar, em lata, em qualquer hipermercado. Tradicionalmente, só é usada para esparregado, feito com óleo de palma, alho, sal e gindungo. A minha mulher faz uma ótima quizaca simplesmente com camarão escaldado, descascado e acabando de fazer salteado em óleo de palma (azeite não é coisa de cozinha angolana nem micaelense).
Faltou-me falar de um terceiro tipo de “base culinária” angolana, o simples caldo em que tudo pode ser feito. É, por exemplo, o menhandungo, que, em quimbundo, quer mesmo dizer “água com picante”.  É o que provavelmente, com outra grafia, HS chama melhadungo. Aqui vai.
3 c. sopa de azeite, 3 cebolas, 3 dentes de alho. Vinagre, sal e gindungo. Numa panela, juntar o azeite, a cebola às rodelas, o alho picado, e 1 l de água. Quando a cebola estiver cozida, juntar o “conduto”, a cozer mais. Acrescentar o vinagre a gosto (2-3 c. sopa). Temperar com sal e gindungo. O “conduto” é o que calha: peixe, frango, chouriço, caça.
Quanto ao peixe, tradicionalmente o cacusso, um peixe pequeno que aqui pode ser substituído por sargo, dourada, peixe galo ou qualquer peixe pequeno de pele vermelha. Em Angola, era usado seco, limpo de escamas, grelhado e desmanchados aos pedaços.
P. S. - Ó malta do forró, que tal encarregarem-me (à borla, prometo) de um menu angolano em próxima festa? Em troca, aceitação de um petisco açoriano, em intercâmbio gastronómico.

P. S. 2 (14.3.2011) - Escreve-me um amigo português casado com uma angolana: "A gimboa é uma erva daninha abundante em Portugal, mas que a quase totalidade das pessoas desconhece ser comestível. Mesmo nas aldeias, com o morte dos mais idosos, já ninguém conhece as ervas comestíveis. Na minha terra, na Beira Baixa, a dita gimboa também se come, mas apenas as folhas mais tenras, os rebentos, rejeitando-se todas as folhas da base em que os caules já apresentam tons avermelhados. Claro que o nome porque é conhecida não é gimboa, mas sim BRÊDOS."

1 comentário:

  1. Mweu caro, só agora encontrei este seu artigo, mas para mim gimboa é a rama da batata doce e não uma erva daninha. Assim poderá ser na terra desse senhor mas não na Angola que eu conheço.

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