terça-feira, 9 de agosto de 2011

Confrarias

O meu texto sobre o polvo açoriano apresentado a concurso pela Confraria dos Gastrónomos Açorianos fez-me pensar sobre as confrarias. Até porque vi depois, na sequência de artigos publicados sobre esse tal concurso, referências a confrarias tão circunscritas como a da sopa da pedra e a da chanfana - não discuto a sua legitimidade e se calhar, apesar de tão circunscritas, têm atividade meritória.
Importante é ter em conta que uma confraria não é autocentrada, não é um grupo de garfófilos. Nada tenho contra tertúlias de bom garfo de grupos de amigos. Já assisti, ao lado, a grandes e alegres patuscadas deste género, de grupos de amigos que se reunem para saborearem coisa da sua predileção. Também eu o faço, por exemplo quando junto amigos no meu ninho da águia para petiscos açorianos, e são tantos petiscos que dão para dezenas de patuscadas.
Outra coisa é confundir isto com uma confraria gastronómica, que tem muito mais que se lhe diga. Não é só um grupo de excursão regular a um ou outro restaurante. É uma associação de defesa de um determinado produto ou da cozinha tradicional de uma região ou de um vinho de região demarcada. São coisas muito sérias, cheias de saber acumulado, de experiência, de rigor crítico, de conhecimento histórico. É claro que não se pode proibir um grupo de patuscos de inventar a confraria dos caracois, que só tem como atividade um almoço mensal na Esperança. Estão no seu direito, mas como em tudo que é o espaço publico, as outras pessoas têm o direito a saberem distinguir as coisas. E também, antes de obra demonstrada e bem avaliada, não podem esperar subsídios de entidades públicas, como um governo regional. A confraria do vinho do Porto não pode ser mixordada com a companhia da confraria da geropiga.
Uma confraria constitui-se para defesa de um interesse gastronómico, é lapalissada. Para isto, tem de desenvolver muito trabalho de estudo, de elaboração histórica, de antropologia cultural e de ciências da nutrição, relacionando com a economia de mercado e familiar, com as migrações, com o tráfego de influências culturais, com a história e caraterísticas químicas, orgânicas e organoléticas do(s) produto(s) em causa. Tem de ter uma vasta cultura do uso do(s) produto(s), em termos mais vastos do que o regional, para poder fazer comparações valorativas. Tem de ter produção relevante de estudos e notas de divulgação em livros, na imprensa ou na “net”.
Nos Açores, conhecia duas confrarias, embora tenha de admitir que não tenho seguido muito o seu trabalho. Há a Confraria do vinho dos Biscoitos, que nem precisa de mais do que aproveitar o extraordinário trabalho de “carola” do meu caro amigo Luís Brum, mostrado no seu museu do vinho dos Biscoitos. Há a Confraria do queijo de S. Jorge, que lamento desconhecer, imerecidamente. Vou tentar colmatar rapidamente esta lacuna.
Aparece-me agora esta confraria de gastronomia açoriana. Depois de muita busca, só encontrei de suas atividades uns jantares rituais, o apoio do governo regional e esta candidatura televisiva que me mereceu muitas reservas, por aparente falta de estudo. Não têm publicações, estudos, página web, mas quero crer que tudo isto virá com o tempo. Também fico a encarar com respeito a dificuldade de ela se afirmar com qualidade e rigor quando o seu animador não é açoriano, não comeu de menino a comida açoriana, não tem a memória ancestral dos sabores, sem eu descrer de os seus anos de vivência açoriana terem um pouco compensado isto.
Porque grupos de bons garfos sempre houve lá pela minha terra. Era eu menino e fui uma vez com o meu avô a uma grande patuscada, em Vila Franca. O prof. Teotónio mandava na cozinha, o Dr. Armando Cortes Rodrigues e o prof. José da Costa mandavam vir coisas eruditas sobre o agraço na história da cozinha romana, o meu querido Jorge desempenhava o seu papel de Salvatore, "tê avô, tê avô..., vino bono". Trocavam-se coisas giras de piadas sobre as declinações possíveis de vinus e bonus, no fim saia crónica deliciosa em latim macarrónico. Parvoice? O latim macarrónico era a minha segunda língua na Coimbra de 60s, nos decretos da praxe afixados no Primeiro de Janeiro. E ainda leio de vez em quando, com grande gozo, "Forte ad Coimbram venit de monte Novatus, / Ut matriculetur. Nomen, si rite recordor, / Jan-Fernandes erat." Não me digam que é difícil de entender.
Este grupo de tertúlios, nos anos 50, não se quiseram chamar de Confraria dos gastrónomos dos Açores, mas mereciam. Espero que a nova confraria mereça a herança. E muito trabalho têm pela frente. Fora o trabalho notável de recolha, mas pouco digerido e não enquadrado histórica e socialmente, de Augusto Gomes, fora um bom capítulo na “Cozinha tradicional portuguesa” de Maria de Lourdes Modesto, fora uns simples apontamentos meus, as cozinhas das ilhas estão muito por tratar. Comece-se por isto, valorizar a diversidade na unidade da cozinha de cada ilha, explicar historicamente as raizes de cada uma dessas cozinhas, as raizes gerais e as específicas. Os meus melhores votos à Confraria. Contem comigo, se puder ajudar.

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