segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

A moda da cataplana

Vou falar da cataplana, mas tenho de começar por dizer porquê. José Bento dos Santos é um nosso grande mestre gastrónomo. Há tempos, e creio que com bom sentido de “marketing”, começou uma grande campanha em prol da cataplana. Tem toda a razão em termos de divulgação de um utensílio culinário único. Mas não, a meu ver, quando a generaliza tanto que faz perder de todo o sentido técnico-culinário o uso da cataplana e, estou certo de que a seu contra-gosto, permite que amadores o ultrapassem.
Não escreveria isto hoje se não tivesse visto hoje/ontem o “Ingrediente secreto”, programa que não perco. Confesso que só conheço da TV o H. Sá Pessoa, o Alma ainda está na minha lista. Mas é a cozinha que pratico, de que mais gosto, a da simplesmente tradicional enriquecida e reconstruida, embora talvez a da TV não chegue à do restaurante, é natural. Hoje, apresentou, como maravilha, um polvo na cataplana com batata doce. Não!
Vamos à técnica, até à física básica. Sabem que o calor se propaga por várias formas, entre as quais a conveção, isto é, ao longo do recipiente. Neste sentido, a cataplana é só semi-invenção portuguesa. Olhem para uma cataplana e vejam a parte inferior. É um “wok” oriental, feito para a conveção, para que toda a temperatura do recipiente seja a mesma, de alto a baixo, feito para fritura rápida a alta temperatura, passando os ingredientes de baixo para cima ao longo da parede do “wok”. Elementar para quem sabe cozinhar esta cozinha oriental. Os legumes vão fritando rápido e a muito calor (“deep fry”) e passando logo para cima, à espera das carnes.
A grande diferença é que o “wok” não tem tampa, só serve para fritar (há outras diferenças importantes, como o tipo de metal e a sua espessura). O segredo da cataplana é a possibilidade de condensação dos vapores na tampa. Simplesmente, não pode haver sol na eira e chuva no nabal. Fritura rápida na parte inferior significa condensação rápida, de vapores aromática e sapidamente muito fortes, na parte superior. Tudo relativamente rápido, as coisas a ficarem crocantes e secas, nada de cozeduras suaves.
A receita mais típica e tradicional da cataplana obedece a isto. Azeite, cebola e chouriço, a fritar forte. Logo depois as amêijoas, a abrir a alto calor, como se deve. Depois, a cataplana a misturar os sabores, em ciclo de alta fervura, conveção, condensação. Mas, essencialmente, como sempre se fez, cozinha de alta temperatura, como a das origens da cataplana, aparentemente utensílio de montanheses e caçadores, sobre lume ou braseira de temperatura incontrolável. Daí talvez o formato, a colocá-la firmemente sobre as brasas, ao contrário das panelas dependuradas acima do fogo da lareira.
Cataplana suave a lume médio ou baixo, para peixes e legumes, não aquece nem arrefece. Já experimentaram medir a temperatura? Eu já e garanto que é igualzinho a qualquer cozinhado de tacho. Só é mais vistoso para o turista.
Cataplana de polvo e batata doce à Ingrediente Secreto (dois ingredientes termicamente incompatíveis), ou de peixes suaves, ou de caldeirada banal, ou até de “carne de porco à alentejana/algarvia”, como já comi em restaurantes algarvios para “épater le touriste”, não vale. E José Bento dos Santos, com todo o seu saber, provavelmente não adivinhava onde se ia meter. É giro apresentar como coisa portuguesa, e é, a cataplana, mas tem de se justificar e valorizar a sua razão de ser, que é culinariamente muito boa, mas para quem sabe tirar proveito.
Os utensílios de cozinha estão intimamente ligados à técnica, aos ingredientes. Não se pode fazer peixe na púcara, não se pode fazer ensopado de borrego numa assadeira larga de chanfana, não se pode fazer (há quem faça!) peixe no alguidar de alcatra terceirense. 
Um dia destes publico o meu bacalhau de tomatada tropical com toco de palma, na cataplana (na falta de cacuço seco). Esse sim, não se pode fazer no tacho normal, melhor certamente na cataplana. Ou, porque não o tenho, mas onde aprendi, no tacho redondo de ferro fundido dos pescadores da ilha de Luanda. Ou as couves aferventadas de S. Miguel, puxadas rapidamente à fervura, com carnes, e só depois diluídas em caldo, que assim não fica amargo.

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