sexta-feira, 24 de junho de 2011

Cozinha na TV

Há muita coisa em que a blogosfera está a dominar a informação tradicional, por exemplo a televisiva e de jornais. Um triste exemplo é o da cozinha. Vendo tão medíocres coisas que as tias publicam, sinto-me no dever de prestar homenagem a quem merece.
Não posso deixar, desculpem, de invocar a minha história. Logo no meu primeiro casamento, muito jovens, éramos dois filhos de casas de muito bem comer. Em casa pobre de estudantes, começamos a fazer o melhor que se podia com poucos meios. Ao mesmo tempo, com grande gosto pelas recolhas da nossa cozinha tradicional, de velhas Deodatas e vizinhas. Tratava eu mais disto, “ela”, ainda minha boa memória, comprava a Banquete. Primeiro cumprimento, bem devido, a Maria Emília Cancela de Abreu e à sua grande colaboradora, Maria de Lourdes Modesto.
Depois, dois anos de Angola, com experiências culinárias marcantes. Grandes jantaradas de amigos com velhas cozinheiras com quem aprendi algumas coisas (para além do que tinha aprendido no mato, no Zaire, até caldeirada de macaco e filetes de crocodilo). Também aí a minha introdução à cozinha brasileira, porque lá na universidade desse tempo havia Zenaides.

Importância da televisão na minha formação culinária foi a seguir, na Suíça. Imperdível foi o meu curso dado por mâitre Jacques, um extraordinário cozinheiro com quem não aprendi nada de modernices ou de receitas inovadas, mas tudo o que me permitiu, lendo Escoffier, saber fazer o que o livro não descreve totalmente, como técnica. Aprendi a fazer um demi-glace e um holandês, também a sua máxima de que "on attend un souflé, un souflé n'attend pas".
Depois, em Portugal, muitos programas interessantes (Michel, nos seus bons tempos, até mestre Silva), mas a descambar para o sucesso fácil junto de pessoas que, respeite-se o seu interesse, querem apenas uma refeição aparentemente melhorada para amigos que não percebem que aquele toque de tomilho é a maior das banalidades. Neste descambar, primeiro Filipa Vacondeus, vá com um pequeno jeitinho para a cozinha, depois D. Mafalda, que já se passou. E, em escala internacional de sucesso, Jamies e Nigellas. Mas também há na TV um Gary Rhodes, a léguas de distância de qualidade. Assim como um desafio estimulante para espetadores sabedores que era o “Ready, steady, cook”. Quantas vezes fiquei a pensar o que fazer com aquelas compras tontas do supermercado. E depois a aprender.
Também há outros programas televisivos divertidos, mas que não pretendem ensinar culinária, só despertar, e muito bem, o gosto pela gastronomia, como os de Anthony Bourdain.
Tudo isto para chegar ao meu imperdível programa televisivo de culinária, o “Ingrediente secreto”, de Henrique Sá Pessoa (RTP 2, domingo, 19:00). O homem é simpático e telegénico. As receitas certamente que não são os seus segredos do Alma mas são um excelente compromisso entre qualidade e simplicidade para acessibilidade ao cozinheiro amador. Esmera-se no aconselhamento de boa técnica mas com uso de utensílios que qualquer pessoa tem em casa. Mostrar como se pica ervas segurando na ponta da faca e insistindo em que nunca ervas vão ao moinho é coisa que as tias do “ai que delícia” não dizem. Ou como se pica uma cebola com filosofia, dizia Santamaria. 
A grande maioria das tias bloguistas de cozinha devia fechar os seus blogues dizendo apenas “não vale a pena lerem estas minhas receitas tiradas das revistas de cabeleireiro, vejam o programa de Sá Pessoa”.

segunda-feira, 13 de junho de 2011

Cozinhas estrangeiras

Quem gosta de cozinha tem frequentemente muita atração pelas cozinhas estrangeiras. Nem falo das exóticas. As estatísticas deste “blogue” indicam que os meus “posts” sobre cozinha angolana são dos mais lidos. Eu também tenho essa atração, principalmente quando cozinho um prato que me evoca uma boa viagem, uma noite bem passada num restaurante. Mas, como já disse, com uma condição. Não inovo, procuro trazer de viagem um bom livro aconselhado por amigos locais bons gatrónomos, quando muito adapto ligeiramente a fazer-me sentir algum toque marcante que me tinha ficado de jantar de viagem (e não só em restaurantes, quantas vezes em casa de amigos grandes cozinheiros). 
Diferente é o caso da cozinha suíça, aquela que aprendi mesmo a sério durante um ano de vida. Para mim não é estrangeira, mas hei-de falar dela. Creio que não goza por cá de grande reputação, mas é de alta qualidade, conjugando cozinha popular simples mas muito boa com cozinha rica de influência francesa. E não é só “fondue” ou “raclette”. Aliás, nem há uma “fondue”: cada cantão da Suíça francófona (a dos melhores queijos) tem a sua variante, embora a mais respeitada seja a do Vaud, só de queijo Gruyère. Gruyère e S. Jorge, os melhores queijos do mundo (vá lá, também um Camembert de leite cru a começar a cheirar a peúga ou um Gorgonzola). Fica para outra vez.
Hoje vão duas coisas simples, de brincadeira de fim de semana, sem necessidade de grande requinte. Ao contrário do que é habitual, vão com receita, porque o meu espaço de receitas é, em princípio, só para receitas minhas. 
1. Mexilhões, Bélgica
Durante muitos anos de juventude, a Bélgica era para mim coisa distante. Até que, na azáfama pós-adesão à CEE, tive de ir lá com frequência, e com que enjoo. Era mesmo o “plat pays”. Bruxelas era a Grand’Place, a cerveja no Roi d’Espagne (mas aquela lista de mais de uma centena de cervejas, e ai as "trapiste", como se fosse uma nossa lista de vinhos!) e a ida ritual ao mijãozinho. Mas também muito boa cozinha, mesmo em restaurantes de preço médio. “Carbonnades”, “waterzooi”, “stöemp”, “chicon gratin”, "dame blanche" ou chocolates brancos para sobremesa e, obviamente, “les moules”, os mexilhões.
Mexilhões são servidos em Bruxelas em modo industrial, eficaz. Abertos em água simples ou talvez com um pouco de vinho branco, guardados iguais em grandes recipientes refrigerados de onde se retiram à hora do pedido para mergulharem num dos molhos “standard” feitos para todo o dia ("marinière", “poulette”, mostarda, Ostende, provençal, picantes, com caril, etc.), acompanhados com as inevitáveis batatas fritas.
Como em toda a parte, a velha cozinha tradicional e genuína é outra coisa. Conhecimento da cozinha belga familiar, excelente, devo-a a uma grande amiga e comadre, mulher de encanto inexcedível, falecida tão jovem. Segundo sua receita respeitada fielmente é que comi ontem os seus mexilhões “à maneira antiga”.
Para 2 pessoas. 1,5 kg de mexilhões, 3 dl de vinho branco seco, 4 c. sopa de manteiga (ou margarina dietética de cozinha), 2 c. sopa de farinha, 1 cebola pequena, 2 gemas de ovo, limão, salsa, sal, pimenta preta e branca, tosta ralada.
Aquecer os mexilhões a lume forte, só até abrir (cerca de 5 minutos), numa panela tapada, com metade do vinho e mais um pouco de água, tudo já a ferver. Mexer frequentemente, remover e retirá-los das cascas. Refogar em lume brando a cebola picada fino em metade da manteiga e juntar o resto de vinho, a salsa picada e as pimentas em partes iguais. Ferver a lume baixo, 10 minutos. Entretanto, trabalhar bem em pasta a farinha com o resto da manteiga. Juntar ao molho, mexendo bem e constantemente, até ligar e engrossar. Deixar arrefecer um pouco e juntar, mexendo bem, as gemas diluídas num pouco de água e bastante sumo de limão (ao contrário do que disse, eu dou sempre um toque pessoal; neste caso, noz moscada, nada de original). Levar novamente à fervura, mexendo bem. Deixar engrossar mais, fervilhando, durante 2 minutos.Temperar com sal. Cobrir o fundo de uma assadeira com tosta ralada. Colocar os mexilhões numa assadeira e polvilhar com tosta ralada. Cobrir com bastante molho e levar ao forno a 200º, cerca de 10 minutos. Servir sobre fatias de pão rústico, semitorrado e com mais uma colherada de manteiga (é manteiga demais para a minha dieta).
2. Vatapá, Brasil
Ao almoço, tinha-me vindo o apetite do outro lado do Atlântico. Era coisa aprazada desde que a tinha comido em Salvador, Largo do Pelourinho, à ilharga da Igreja de NSa do Rosário dos Pretos e das casas de cor berrante lidas em jovem por via de Jorge Amado, que lá tem hoje a sua casa-museu, no topo do largo. Foi mergulho de degustação na cozinha baiana, no imprescindível restaurante de mostra culinária que é o SENAC, o instituto brasileiro de formação profissional, neste caso com uma boa escola de hotelaria e restauração, garantem-me que com absoluto respeito pela genuinidade, e onde se compra um dos mais reputados livros de receitas baianas, que agora reli.
O vatapá é uma açorda, feita em todo o nordeste brasileiro, com muitas variantes. Açorda de pão, peixe e camarão seco, óleo de palma, tudo coisas que os migrantes da catinga podiam levar consigo em longas jornadas de vidas secas, ao sol da angústia (é preciso ter uma perspetiva sociológica da cozinha). Todavia, com respeito pelo Nordeste, que desafia à ideia de "se o Nordeste fosse independente", lendo as receitas, vou claramente por este vatapá baiano, aliás o mais conceituado. Mas será que uma açorda pode ser assim muito diferente das nossas (claro que estou a falar de açorda fora do significado tradicional alentejano)? É açorda de bacalhau e camarão mas com óleo de palma, leite de coco, sementes de caju, gengibre. Chega para abrir o apetite? O único senão é que, genuinamente, o camarão é seco, coisa que nunca consegui encontrar cá. Mas também vai bem com camarão pequeno, fresco e descascado, bem aquecido no forno a 150º, 20 minutos, a seco, até perder completamente a água. Foi o que fiz e a que chamarei, obedecendo à receita, “camarão seco”.
1 pão rústico, tipo alentejano, 150 g de bacalhau* (para isto, usei aqueles pedaços mais ordinários que se vendem como “caldeirada de bacalhau”), 1 cebola grande, 3 c. sopa cheias de óleo de palma (azeite de dendém, dito à brasileira)**, 250 g de camarão “seco” ***, 60 g de castanha de caju, 1 c. chá de gengibre fresco ralado, 2 dl de leite de coco, 1-1,5 dl de caldo de peixe, sal, piripiri (facultativo), coentros.
Migar o pão e demolhar em água. Espremer muito bem e misturar com o leite de coco. Deixar repousar. Ferver água, juntar o bacalhau, levar novamente à fervura, apagar o lume, tapar o tacho e deixar escaldar 7 minutos. Refogar a cebola picada fino no óleo de palma e saltear os camarões. Misturar bem com a pasta de pão, o caju esmagado grosso em almofariz, o bacalhau desfiado grosseiramente, gengibre, mais caldo de peixe para espessura cremosa mas não seca. Ferver mexendo sempre até engrossar bem e começar a soltar-se do fundo. Antes de servir, coentros picados.
Frequentemente, no Brasil, o vatapá é um acompanhamento, por exemplo para peixe frito, moqueca ou xinxim de galinha. Para mim, como foi neste fim de semana, vai muito bem e substancialmente como prato único. Reforço é as doses, como se vê nos asteriscos na lista de ingredientes. Na receita original, seria * 100 g, *** 150 g. Também não vou pela receita em relação ao óleo de palma, ** 2 dl. Acho que fica um pouco enjoativo. Mesmo a minha mulher, angolana, acha o mesmo e, na sua esmerada cozinha tropical, reduz sempre um pouco a quantidade de óleo de palma ou corta com sumo de limão.