sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Bom ano

Tanto quanto nos deixarem... Ao menos boa disposição e, para isso, aqui vai uma cena do "season movie" mais popular deste ano.

quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Outra vez a cataplana

Confesso que tenho idiossincrasias irritantes, como a de me ficarem atravessadas na garganta espinhas minúsculas, falando metaforicamente. Nos últimos tempos, sei lá porquê, foi a cataplana. Dela falei aqui e aqui e prometi uma receita, construção (nem sequer se pode dizer que reconstrução) das minhas memórias de Angola, agora avivadas pela cativa que me tem cativo.
Para o que tecnicamente pode dar a cataplana, pouca coisa há tão adequada como o peixe seco africano. Podem ler no sítio habitual uma receita de cataplana de peixe seco de inspiração angolana, que já experimentei depois de inventar. 
O cacusso, muito vulgar em Angola e o mais apreciado peixe para secar, habita as águas entre rio e mar e, muito tipicamente, as lagunas. Foi muito popularizado em Israel pelos restaurantes do lago de Tiberíades, onde o comi relembrando Luanda, com a invocação mítica de ser o “peixe de S. Pedro”. São muitas espécies do género Tilapia, hoje espalhadas por todo o mundo. Mas quem fixar a imagem e for à peixaria, certamente arranja bom substituto, embora não seco. Mas é difícil secar? É só deixar uns dias em sal, eliminar o excesso de sal e levar ao forno a 80-90º, 4-6 horas.

P. S. (29.12.2012) - Reparei agora que a receita tinha erros, que já corrigi. Peço desculpa.

segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

Jantar de Natal, nos começos

Assim comecei o jantar de Natal, antes de passar à mesa.
Pasta de bacalhau tipo brandade, com sabores alentejanos
200 g de restos de bacalhau, de parte da aba ou de bacalhau lascado à venda, congelado, 6 dentes de alho, 2 c. sopa de massa de pimentão, coentros a gosto, 10-20 azeitonas descaroçadas, azeite q. b., sal se necessário, pimenta branca
Se já não estiver preparado, escaldar o bacalhau em água a ferver ou leite, apagando o lume e deixando escaldar durante 7 minutos. Moer tudo em moinho elétrico, sem o azeite. Depois, à parte, bater bem a mistura com azeite, até ficar bem untuosa mas não demasiadamente gorda.
Pasta de queijo com todos mas não demais
1 embalagem de queijo Filadélfia ou de ricotta, 40 g de presunto em peça, 3 dentes de alho, 1 raminho de coentros, pimenta preta. Moer tudo, juntamente.

Pasta de fígado
Desta vez não indico doses. Desafio a fazerem a gosto. Não vai ser fácil equilibrarem bem as quantidades, mas nisto é que está o prazer da cozinha.
Fígados de galinha ou de pato, bacon, cogumelos (poucos), manteiga, miolo de pão, caldo-geleia de aves, vinho do Porto, pimenta preta e verde, nata, sumo de laranja e de limão.
Cozer os fígados e reservar. Alourar em manteiga fatias finas de bacon, escorrer e secar em papel absorvente. Saltear os cogumelos em fundo de manteiga, deixar embeber 10 minutos em sumo de limão. Deixar algum tempo a embeber miolo de pão em caldo de aves, espremer e levar à fervura, mexendo bem, a secar e adquirir consistência. Juntar tudo, com os temperos e o vinho, e passar no moinho. Deve ficar pasta consistente mas para barrar, não tão espessa como as pastas de fígado industriais. 
Ovas de salmão
Misturadas, sem ficar aguado, com um pouco de nata azeda (partes iguais de nata e iogurte simples) temperada com paprika um pouco picante e cominho.
Como base, coisas muito simples de supermercado, minitostas, crackers, tostas finas, “oh simple things”. Podia ter sido muito mais, blinis, bolo lêvedo, bolo de sertã, bolo do caco, variantes de panquecas, csipetkas, crocantes muitos que podia inventar, mas há limites para o trabalho que as festas merecem, principalmente para quem também tem de fazer o “must” da tradição familiar, a galinha recheada, coisa que ocupa 3 dias, onde se viu tal anacronismo culinário?
Segundo o meu bom costume, e porque uma garrafa de champanhe dava bem para eu consumidor e outros só simbólicos, entre copos de água, foi toda a noite corrida a champanhe, desde estes aperitivos à galinha recheada e à sobremesa.
(A foto foi tirada já quando se tinha bem provado as iguarias. Antes, estava a coisa mais composta)

Oferta de livro

Recebo muitas mensagens de leitores que se queixam de não conseguirem encontrar o meu livro “O Gosto de bem Comer” (Editorial Caminho, 2005, ISBN 972-21-1761-09). De facto, só muito raramente o encontro nas livrarias e diz-me a editora que não faz nova edição enquanto ainda houver exemplares à venda, talvez em Freixo de Espada à Cinta.
Assim, mesmo que seja processado por quebra contratual, vou considerá-lo como de domínio público e pô-lo à disposição como “e-book” gratuito. Vai em PDF, com margens iguais para quem o quiser imprimir de um ou dois lados da folha de papel. A capa é que fica ao critério de cada um. A original vai como imagem deste “post”, mas tem direitos de autor (Danuta Wojciechowska).
Peço que tomem o livro como um pouco datado. As considerações gerais, as evocações da cozinha clássica, os molhos, as sugestões de coisas mais ou menos fáceis para cozinheiros amadores mas de bom gosto, a cozinha de família e a cozinha tradicional açoriana, bem como os meus exemplos de cozinha internacional, ainda valem.  
As técnicas, a acessibilidade de ingredientes estranhos, mudaram muito. Também foi evoluindo o meu estilo de cozinha, evidente para quem queira comparar as minhas receitas pessoais deste livro com as dos últimos anos, com muitos exemplos na minha página de receitas. Mantenho no essencial o meu neo-clacissismo, mas com aproveitamento do que me parece realmente inovador e de grande qualidade das modernas cozinhas de autor.

sábado, 24 de dezembro de 2011

Natal micaelense

Tenho dúvidas sobre isto. Devia ter escrito o título com ponto de interrogação. Os clássicos da etnografia micaelense (Luís Bernardo Ataíde, Carreiro da Costa) não abrem capítulos de relevo para a gastronomnia e os costumes culinários, assim como também não o fazem os recoletores de receitas, como Augusto Gomes. Eu tenho um longo trabalho de recolha de cozinha tradicional, tanto popular como aristocrática-burguesa, mas nunca fiz um estudo sério sobre as cozinhas específicas, de festas religiosas ou profanas ou de acontecimentos familiares. Sei alguma coisa, mas muito superficial. Não me arrisco a sistematizá-la e a descrevê-la como norma.
Claro que o que mais fixado está na minha memória é o uso de família, sempre rigidamente codificado e inalterado. Ainda hoje relativamente cumprido por três irmãos que já não têm presentes - fisicamente - as duas gerações anteriores que lhes ditaram essas memórias. Todavia, não posso garantir que tudo o que disser reflete um costume geral.
A consoada era pautada pelo horário dominante da missa do galo. Comia-se qualquer coisa ligeira em jantar normal e fazia-se a consoada no regresso da missa, com a oferta dos presentes e algumas orações junto ao presépio. Tanto quanto me lembro, era uma ceia sem padrões rígidos. O bacalhau não era tão obrigatório como no continente e até nem havia propriamente grandes pratadas fosse do que fosse. Coisas ligeiras, sempre uma canja rica, alguns salgados, profusão de doces, principalmente docinhos de forma. Essencial, também o bolo de Natal, uma especialidade única, desaparecida no continente em que o bolo rei abafou outros bolos natalícios. Bolo rei que não se comia nos Açores no meu tempo de criança, tanto quanto me lembro. 
Os fritos doces não tinham grande expressão. Fazem-se muito nos Açores todos os que cá são comuns, mais variantes de filhoses e coisas que já não vejo cá, como as rosas do Egito. Principalmente, mais as malassadas (melaçadas?) tipicamente micaelenses (embora com umas primas afastadas madeirenses). Não se fazem é no Natal, mas sim no carnaval.
A grande festa é o jantar familiar do dia 25. Nunca o almoço, cá muito vulgar como refeição de festa familiar (julgo que muito por hábito de antigos colonos). Novamente, tanto quanto sei, o bacalhau não fazia regra. Com exceção de uma ou outra casa que escolhia carne assada ou, por menores recursos, pratos populares como os torresmos de molho de fígado, a regra geral era a galinha, em muitas receitas que fazem parte do ementário micaelense mas principalmente nas várias variantes de assada, particularmente recheada, servida quente (S. Miguel) ou, como na minha casa de mãe e avó terceirenses, fria trinchada em fatias mistas de carne e recheio. Recheio rico de pão em canja, muitos ovos, especiarias, fígados, azeitonas e colocado não só no bucho mas também, e principalmente, entre a carne e a pele, o que lhe dá um assado completamente diferente do recheio no interior da ave. A receita, com longa conversa evocativa, vem no meu livro “Gosto de Bem Comer”.
Creio que não posso garantir que fosse hábito popular, mas desde criança que era autorizado a coisa especial, partilhar simbolicamente com os adultos a bebida obrigatória com este prato, champanhe. Fora os açorianos, julgo que seria muito raro, nos anos 50, servir-se champanhe à mesa portuguesa a acompanhar um prato de carne. Claro que não era coisa que merecesse nome de champanhe. Francês não havia e se houvesse a bolsa não chegava. Era coisa de nome que me ficou na cabeça desde menino, Raposeira. Mas lembro-me de que semi-doce, coisa que hoje não consigo beber.
Se a galinha dominava, não faltava quem já comesse antes peru, muito mais do que no continente. Influência dos açorianos dos Estados Unidos? Mais raramente, mas coisa que me ficou de alguma memória da casa dos meus avós paternos, o capão. Muito mais tarde, instalada toda a família em Lisboa, recuperámos este uso, quando se começaram a vender os bons capões da Galiza. Entretanto, filhos e netos vão tendo de repartir o seu tempo pelas várias famílias, o núcleo tradicional vai-se reduzindo e este ano, como no anterior, volto à galinha. Agora uma pularda de belo aspeto e imponência (2,8 kg). Vamos a ver como se vai dar ao elogio, amanhã ao jantar.
Para sobremesa, coisas variadas, mas tradicional predomínio dos doces de tacho, com destaque para os tradicionais arroz doce, barriga de freira, doce de vinagre. Claro que também o ananás. Vinho do Porto ou licores. Com o café e o chá, os docinhos de forminha, muitos e muitos, de uso generalizado ou orgulhosamente segredos de família. A lista é imensa. Só de invenções da minha avó, uma doceira genial, conto com quase uma dúzia. Agora tenho uma mulher de negócios que acha que são uma excelente oportunidade de exportação...
Licores e doces de forminha tinham grande importância pelos dias fora, até ao dia de Reis. Eram os dias de visitas inumeráveis de ir dar Boas Festas em tempos sem SMS e e-mail (já me enjoava ao fim desse dever de ir com a minha mãe à tia X e à amiga Y), mas com algum proveito. As mesas estavam sempre postas e eu tinha direito a um golinho miserável do licor obrigatório, a “mijinha do Menino”. Um dia destes tenho de tentar reproduzir a especialidade da minha tia Lurdes, licor de poejo. Fico-me entretanto pelo tradicional licor de leite, segundo a receita excelente do meu pai, que também vem no meu livro.

(A foto é de um presépio da Ribeira Grande. Quando eu era miúdo, era excursão obrigatória ir-se ver o enorme presépio animado da matriz da Ribeira Grande. Leio hoje, com muita satisfação, que já há competição entre vários presépios animados. Este é um deles. Não deixem morrer as tradições, a não ser as que hoje são execráveis como anacronismos civilizacionais, de opressão, de obscurantismo)

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

Truques e tricas - o arroz

Hoje vem à escrita coisa vulgaríssima mas frequentemente muito maltratada, o arroz (para dar toque erudito, género Oryza, espécie mais usada O. sativa). Nem é questão, bem aceitável, de muita gente não estar treinada para tirar todo o partido do arroz. O que me vem logo à ideia, com espantação, é que hoje seja tão vulgar “chefes” [nota 2] afirmarem, por exemplo, que o segredo do seu arroz de marisco é ser feito com arroz agulha e não com arroz carolino! Se acredita nisto, meu caro leitor, e se gosta desse tal especialíssimo arroz, não vale a pena ler o que se segue.
Começando por essa coisa básica, há dois tipos principais de arroz, que diferem principalmente na proporção relativa dos dois tipos de amido, a amilose e a amilopectina. Quanto maior a primeira, mais facilmente se faz a “cristalização” ou retrogradação do amido, em vez da gelatinização, impedindo a sua dissolução na água de cozedura e a sua entrada para os grânulos de amido, a inchá-los.
(1) o arroz duro, mais rico em amilose (22% ou mais), resultando mais seco depois da cozedura e portanto mais solto, como sejam os tipos de arroz de grão longo derivados da subespécie indica (agulha, basmati, surinam, etc.). É o aconselhado para confeções simples de arroz, de acompanhamento.
(2) o arroz de grão curto, com menos amilose, resultando em menor “cristalização” na cozedura e, em contrapartida, em consistência mais pastosa, até gomosa e principalmente com muita absorção do líquido de cozer e dos seus sabores. Derivadas da subespécie japonica são muitas variantes, como o nosso tradicional carolino; ou os arrozes piemonteses usados para o risoto (arbório ou carnarolio, que hoje se vendem cá em toda a parte, ou outros menos vulgares, como o vialone, o nano  ou o razza); ou os arrozes valencianos (arroz de tipo bomba, bahia, senia, calasparra, cullera, etc.) para a “paella” e muitos outros pratos excelentes de arroz, entre os quais o mau favorito “arroz a banda”. No fundo, substituem-se bem uns aos outros e quase que os uso indiferentemente, tendo muito em conta o preço. Afinal, com ajustes técnicos (pequenas variações de temperatura e tempo), o nosso carolino dá para todos os arrozes mistos, mesmo para risoto.
Não é possível discutir a grande variedade de arrozes, dentro destas duas classes, por vezes diferindo é no tratamento do cereal: integral, “paddy”, estufado, tufado, silvestre, vaporizado ou pré-tratado. Nunca os uso, não estou habilitado a falar deles. Caso especial é o arroz japonês mais conhecido, do “suchi”. É um arroz de grão pequeno, pobre em amilose, portanto perto dos arrozes de inchar e absorver sabor, mas que se usa tipo branco, por questão de técnica de cozedura, a que iremos adiante. Na minha cozinha "japonesa", uso carolino.
Regra básica, comum a todos os arrozes, é lavá-lo em água corrente. Comecemos pelo arroz branco e suas variantes, para acompanhamento, fundamentalmente preparado com arroz agulha. Na prática, não há que se preocupar com a relação arroz-água, porque ele é sempre seco depois de cozido. Cozido em bastante água com sal, a ferver bem, a lume alto, cerca de 13 minutos, provando até ficar ao dente - ou um pouco mais cozido, depende do gosto legítimo e não criticável, exceto se me disserem que gostam de papa de arroz. Despejar rapidamente para escorredor, passar por água fria e escorrer. Ao servir, aquecer a seco numa frigideira siliconada, mexendo bem com uma espátula para não colar nem pegar ao fundo (arroz branco) ou, mais facilmente hoje, aquecendo no micro-ondas e depois mexendo/soltando-o bem. Em alternativa, aquecer salteando em manteiga (arroz de manteiga). [Nota 3]
Variante especial, de que gosto muito, é o arroz à crioula, que já exige mais técnica. Tradicionalmente, também é feito com arroz seco, o surinam. O arroz é coberto, numa frigideira larga, com uma altura de cerca de 3 cm de água e sal, é cozido a lume forte, destapado, até a água ficar a rasar o arroz e então tapado e cozido lentamente (até 45 minutos!) a lume muito baixo, controlando-se à vista e por prova quando está pronto.
Também, intermédio entre os dois usos típicos de arroz, o pilau ou pilaf. É feito com arroz agulha, mas refogado e cozido em caldo, ou até no forno. No entanto, respeita a regra de não ser arroz adequado a “arroz de …”, porque tipicamente é comido separadamente das carnes ou outros ingredientes.
Passemos então aos nossos tantos arrozes de “qualquer coisa” (vou chamar arroz misto; hoje claramente em maior voga o de mariscos, mas tantos e tão bons outros há), à paella e seus primos, aos muitos risotos. Sempre, mas sempre, arroz de grão curto e de baixo teor de amilose. Regra basicamente diferente do anterior, de tipo agulha, é ser necessário ajustar o volume de líquido em relação ao arroz. No nosso caso, com o carolino, depende de se gostar de um arroz no fim mais seco embora cremoso (como prefiro) ou mais malandrinho. No primeiro caso, 1,5-2 vezes de líquido o volume do arroz, no segundo 3,5 ou até 4 (fica quase sopa, mas há quem goste e está no seu direito). Para arroz mais seco, eu uso 1,5 vezes mas é coisa exigente de controlo. Para quem não quer correr riscos, é melhor ir pelas 2 vezes. O que se vê fazer mais, nos restaurantes populares, é um arroz com molho mas não malandrinho. Se gostam assim, sugiro 2,5 vezes de líquido.
Outra diferença, a gosto, é refogar-se ou não previamente o arroz. E até, variando mais, refogar em cebola alourada ou apenas voltear o arroz em gordura, a ficar translúcido. Tudo isto é a lume forte, e o líquido - água, caldo, com ou sem vinho - deve ser adicionado já acabado de ferver, nunca frio, não deve haver choques térmicos. Depois, regra geral em todos estes arrozes, dar só duas a três voltas a misturar o arroz com o líquido, baixar o lume, tapar, deixando cozer cerca de 15 minutos. Não deve ficar completamente cozido, porque o arroz deve repousar e acabar de cozer 2-3 minutos, tapado, com o lume apagado, imediatamente antes de ir para a mesa.
Parecendo ele estar a ficar seco ou a pegar, há quem vá encher um copo de água à torneira, juntar ao arroz e mexer tudo bem. Nunca! Sempre água bem quente, aos poucos, metida entre o arroz e os lados do tacho ou frigideira.
Truque essencial neste tipo de cozinhado, quando inclui ingredientes diferentes, entre carnes ou enchidos, peixes, mariscos ou legumes, ervas só muito perto do fim, é saber qual a altura certa para juntar cada coisa, de forma a que, no fim, tudo fique com a mesma textura de cozedura. Juntar carnes no fim ou juntar ao princípio camarão cozido e amêijoas já abertas dá asneira. Mais subtil é a questão dos temperos e ervas. Alguns temperos que uso muito, como Jamaica, malagueta, açaflor (para só falar dos açorianos) embebem lentamente, desde o princípio. Cominhos, erva doce, canela, avivam mais para o fim, a canela até mesmo já com o lume apagado, tal como faço com a mostarda, seja em que cozinhado for. Ervas ao princípio só louro, salsa e tomilho, bem como talos de coentros. Todas as outras só nos 3-5 minutos finais da confeção, para "explodir" o sabor.
Caso especial é o dos arrozes de ir ao forno, como o de “sustância”, o de pato, o de perna de borrego a pingar para o arroz (excelente receita transmontana quase esquecida), o arroz vermelho açoriano, etc. Não posso dar conselhos, porque tudo depende muito do forno e da assadeira, também do que se deseja no fim: um arroz mole e untuoso ou um arroz mais seco e com superfície crestada. Isto faz escolher a temperatura do forno, o tempo e a quantidade de líquido. Em regra, uso bastante mais líquido do que no arroz feito ao lume. Aponto para que, a 2/3 da cozedura, o líquido já tenha quase embebido o arroz. O tempo que falta é o compromisso entre cozer o arroz e "crocá-lo". Escolher a temperatura do forno a partir desta altura é coisa de bom cozinheiro.
Na tradição espanhola, não há grandes diferenças em relação à nossa técnica base de arroz misto, como descrevi. Apenas não se tapa a “paella” (o nome é o da frigideira, que passou para designação do prato). Segundo a vi fazer por um amigo espanhol - e valenciano! - grande cozinheiro, diria que ele usou um pouco mais de água do que nós, em relação à quantidade de arroz, e lume médio+, um pouco mais forte do que eu uso para os nossos arrozes, médio--. Mas este é o género de coisas sobre as quais não posso dar dicas infalíveis. É experimentar até acertar.
No caso dos risotos, a técnica típica é adicionar aos poucos a primeira metade do líquido (em proporção maior do que a nossa, pelo menos 3 vezes o volume de arroz) e mexendo suavemente a secar de cada vez. Ao fim de cerca de 18 minutos, o arroz deve estar cozido, relativamente empapado num caldo um pouco engrossado com a sua fécula, mas o arroz cozido firme. Este é o segredo subtil do risoto, o de o arroz libertar bastante para o molho a sua goma. No fim, a lume baixo, misturar bem manteiga e queijo ralado, a incorporar. Tapar, apagar o lume e deixar repousar durante dois minutos, imediatamente antes de servir. Neste ponto certo é que ele exige estar ao dente. Tem de se controlar antes como é que ele vai ficar.
Finalmente, porque hoje está na moda o suchi, o arroz à japonesa. Como disse, é do tipo do nosso carolino mas cozinha-se de modo a ficar relativamente solto e não gomoso. Muito simplesmente, mas a exigir paciência, a lavagem do arroz, que é crítica. Várias vezes, em água fria, esfregando o arroz entre as mãos, com suavidade, escorrendo e voltando a lavar em nova água. Só está pronto quando a água sai límpida. Deixar repousar, escorrido, durante meia hora. Depois é cozê-lo no mesmo volume de água (repare-se, muito menos do que usamos), primeiro a lume médio em panela bem tapada, até começar a sair vapor, depois em lume mínimo ou melhor ao vapor, 10-12 minutos, sem nunca mexer ou destapar. No fim, um golpe de calor muito forte, só uns segundos. Deixar repousar fora do lume, 15 minutos, mexer bem com uma colher molhada em água muito fria, para soltar os grãos. Claro que nada disto é invenção minha, vem nos livros, mas garanto que experimentei repetidamente com sucesso.
NOTA 1 - Talvez estranhem eu não me referir à cozinha indiana e à chinesa. Não as domino, não vou escrever bitaites. No entanto, vale a pena alguma coisa modesta. Nunca fui à Índia - bem gostava, mais do que à China - e só conheço a sua cozinha de restaurantes. Neste caso, em comparação com a China, tenho melhor critério. Um velho amigo meu e bom garfo é casado com uma indiana e dá-me bons conselhos. Diz-me que o mais típico é o basmati e que o segredo é lavá-lo muito bem, para ficar solto. Quando o como nos restaurantes onde me leva a mim e ao nosso grupo dos amigos do liceu, julgo que é como deve ser. Coisa relacionada mas diferente é o biryani.
Já arroz à chinesa, não sei o que é, por experiência garantida. O que se come em Chinatown, em Nova Iorque, genuino creio que sim, porque cheio de chineses à minha volta, é uma papa horrorosa. Em Portugal, eu como um belo arroz no Mandarim, no Estoril, mas não o chauchau dos tlinta-e-tlês.

NOTA 2 - Isto de "chefes" já irrita. Sobre a tal coisa do arroz de marisco com arroz agulha, disse-me há dias o tasqueiro (sem ofensa) do meu almoço de sábado que lhe tinham recomendado isso, que tinha experimentado e tinha saído coisa aguada e sensaborona. Ele soube criticar, contra a moda, arriscou rejeições de clientes "sabedores", merece o título de "chefe"... Hoje vejo "chefe" ser qualquer jovem estudante de escola de restauração. Há um "site" que mostra receitas de dois "chefes"... de 18-20 anos! É claro que há sempre um chefe de cozinha, mas "chef/chefe", como qualificação pessoal, deve ser um título a reconhecer um cozinheiro consagrado, de alto nível. Isto faz-me lembrar uma "boutade" do meu professor de anatomia, Maximino Correia: "tratem-me por Doutor, que é o que sou. Professor é de música ou de ginástica".

NOTA 3 - Aproveito para coisa à margem, de que já falei. Um amigo com preocupações dietéticas dizia-me há tempos que fazia sempre este passo final de arroz de manteiga com manteiga magra. Erro! A manteiga vai chegar à fervura e a manteiga magra nunca pode ser fervida. Eu uso mesmo manteiga, apenas 1-2 colheres de chá (o que exige bom esforço de saltear), o que dieteticamente não aquece nem arrefece. Mas se tiverem preocupações, a única substituta possível, para aquecimento, é a margarina dietética de cozinha (não a de barrar pão).

NOTA 4 - Fora do tema, mas porque falei do tal bom "tasqueiro", novamente sem ofensa, aqui vai mais uma história em seu abono. Serve a copo um vinho muito razoável, da Adega de Pegões. Há tempos, pedi branco, veio numa flute. Porquê, perguntei? "Então o senhor não sabe que é assim que se faz agora, mantém o vinho fresco?". Como já tinha visto fazer o mesmo nos restaurantes populares a que gosto de ir no meu sítio, expliquei-lhe que isso não fazia sentido, que a flute era só para champanhe para conservar moderadamente o gás, não tinha nada a ver com temperatura. Ele percebeu e nunca mais o vi servir flutes, a mim ou a outros. Quase diria que ele é um chefe...

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

A moda da cataplana

Vou falar da cataplana, mas tenho de começar por dizer porquê. José Bento dos Santos é um nosso grande mestre gastrónomo. Há tempos, e creio que com bom sentido de “marketing”, começou uma grande campanha em prol da cataplana. Tem toda a razão em termos de divulgação de um utensílio culinário único. Mas não, a meu ver, quando a generaliza tanto que faz perder de todo o sentido técnico-culinário o uso da cataplana e, estou certo de que a seu contra-gosto, permite que amadores o ultrapassem.
Não escreveria isto hoje se não tivesse visto hoje/ontem o “Ingrediente secreto”, programa que não perco. Confesso que só conheço da TV o H. Sá Pessoa, o Alma ainda está na minha lista. Mas é a cozinha que pratico, de que mais gosto, a da simplesmente tradicional enriquecida e reconstruida, embora talvez a da TV não chegue à do restaurante, é natural. Hoje, apresentou, como maravilha, um polvo na cataplana com batata doce. Não!
Vamos à técnica, até à física básica. Sabem que o calor se propaga por várias formas, entre as quais a conveção, isto é, ao longo do recipiente. Neste sentido, a cataplana é só semi-invenção portuguesa. Olhem para uma cataplana e vejam a parte inferior. É um “wok” oriental, feito para a conveção, para que toda a temperatura do recipiente seja a mesma, de alto a baixo, feito para fritura rápida a alta temperatura, passando os ingredientes de baixo para cima ao longo da parede do “wok”. Elementar para quem sabe cozinhar esta cozinha oriental. Os legumes vão fritando rápido e a muito calor (“deep fry”) e passando logo para cima, à espera das carnes.
A grande diferença é que o “wok” não tem tampa, só serve para fritar (há outras diferenças importantes, como o tipo de metal e a sua espessura). O segredo da cataplana é a possibilidade de condensação dos vapores na tampa. Simplesmente, não pode haver sol na eira e chuva no nabal. Fritura rápida na parte inferior significa condensação rápida, de vapores aromática e sapidamente muito fortes, na parte superior. Tudo relativamente rápido, as coisas a ficarem crocantes e secas, nada de cozeduras suaves.
A receita mais típica e tradicional da cataplana obedece a isto. Azeite, cebola e chouriço, a fritar forte. Logo depois as amêijoas, a abrir a alto calor, como se deve. Depois, a cataplana a misturar os sabores, em ciclo de alta fervura, conveção, condensação. Mas, essencialmente, como sempre se fez, cozinha de alta temperatura, como a das origens da cataplana, aparentemente utensílio de montanheses e caçadores, sobre lume ou braseira de temperatura incontrolável. Daí talvez o formato, a colocá-la firmemente sobre as brasas, ao contrário das panelas dependuradas acima do fogo da lareira.
Cataplana suave a lume médio ou baixo, para peixes e legumes, não aquece nem arrefece. Já experimentaram medir a temperatura? Eu já e garanto que é igualzinho a qualquer cozinhado de tacho. Só é mais vistoso para o turista.
Cataplana de polvo e batata doce à Ingrediente Secreto (dois ingredientes termicamente incompatíveis), ou de peixes suaves, ou de caldeirada banal, ou até de “carne de porco à alentejana/algarvia”, como já comi em restaurantes algarvios para “épater le touriste”, não vale. E José Bento dos Santos, com todo o seu saber, provavelmente não adivinhava onde se ia meter. É giro apresentar como coisa portuguesa, e é, a cataplana, mas tem de se justificar e valorizar a sua razão de ser, que é culinariamente muito boa, mas para quem sabe tirar proveito.
Os utensílios de cozinha estão intimamente ligados à técnica, aos ingredientes. Não se pode fazer peixe na púcara, não se pode fazer ensopado de borrego numa assadeira larga de chanfana, não se pode fazer (há quem faça!) peixe no alguidar de alcatra terceirense. 
Um dia destes publico o meu bacalhau de tomatada tropical com toco de palma, na cataplana (na falta de cacuço seco). Esse sim, não se pode fazer no tacho normal, melhor certamente na cataplana. Ou, porque não o tenho, mas onde aprendi, no tacho redondo de ferro fundido dos pescadores da ilha de Luanda. Ou as couves aferventadas de S. Miguel, puxadas rapidamente à fervura, com carnes, e só depois diluídas em caldo, que assim não fica amargo.

domingo, 11 de dezembro de 2011

Oferta de Natal

Já é tradição de bom ror de anos eu inventar no Natal uma receita de bacalhau para o meu amigo Nuno. Estou certo de que ele não levará a mal partilhá-la com outros amigos que ainda vão gostando de coisas que eu proponho. O deste ano é bacalhau escaldado em leite temperado, com migas de batata e espargos mais espinafres salteados. A receita está no sítio do costume.
Este bacalhau é simples e claramente evocativo de sabores tradicionais portugueses, neste caso com forte tom alentejano, uma região que até nem é emblemática em termos de bacalhau. Todavia, permite adaptações regionais, a que desafio os meus amigos. O Nuno, na sua Madeira, pode bem substituir as migas de batata por uma açorda bem consistente e dourada, como as migas alentejanas, feita com o nosso pão de milho ilhéu, mais os espargos e com um toque de tempero de segurelha. Os açorianos que façam as migas das duas batatas, inglesa e doce e com um toque subtil de malagueta.
Importante é que me parece ser desafio deste prato, o compromisso estreito entre a rusticidade singela dos componentes e a suavidade dada pela técnica, simples e por isto obrigatória de se seguir. Por exemplo, experimentem saltar por cima dessa coisa parva de escaldar primeiro os espinafres e depois digam. Não tenho a pretensão, eu amador, de chamar a isto coisa na moda, “reconstrução”. Digamos, para simplificar, que é coisa que eu serviria a um amigo estrangeiro, introduzindo-o “com bons modos” nos sabores portugueses.

P. S. - E como nada se perde, os talos dos espargos, não utilizados nas migas, cozidos durante 15 minutos no leite de confitar o bacalhau, no fim tudo moído com parte do chouriço, e passado, resultou numa boa sopa cremosa. 

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Truques para ovos (2)

Na última entrada, não sei como, esqueci-me de falar de um outro tipo de confeção de ovos. Lembrei-me agora, porque vou fazer uma salada César à minha maneira, sobre a qual já escrevi. Uso-os muito para variantes de maionese. Não sei bem como lhes chamar em português. Talvez “ovos abafados”, embora isto sugira “pochés”, que são os escalfados. O termo inglês tradicional é “coddled”, cozinhados suavemente sem a água ferver. Repare-se que nessa receita uso outra coisa, ovos cozidos rapidamente (45 segundos) mas em água a ferver. É bom mas diferente.
É este o truque, água sem ferver, com várias variantes. Começa por se poder usar: 1. ovo inteiro, de que se retira a gema mole mas consistente, como nessa salada; 2. ou ovo aberto. No primeiro caso, mais variantes da variante. Primeiro, requintada, usar um banho com temperatura controlada, luxo que eu tenho, oferta engenhoca de engenheiro. Para consistente mas suave, 65º, 50-60 minutos. Para usar só a gema, para molho como o César, 30 minutos para usar só a gema, 40 minutos para misturar com gema crua, mas cada um que tente a gosto.
Quem não pode dispor desse dispositivo, pode cozer o ovo durante 10 minutos em água controlando que a água nunca chegue a ferver  mas quase que lá chegue. Outra variante é ferver a água e despejá-la sobre o ovo, em recipiente aquecido e de preferência tapado, durante 10 minutos ou um pouco mais, a gosto. A clara não fica muito utilizável mas a gema fica com ótima consistência (mas a manejar com cuidado para não rebentar) para trabalhar em molhos, por exemplo.
A outra variante principal é a de ovo aberto. Podem-se indicar várias formas de o cozinhar, mas o mais prático é uma “minicocotte”, um pequeno recipiente com tampa hermética que se coloca em banho-maria. Eu não tenho e não vou comprar. Uso, com o mesmo resultado, os potes da iogurteira. Novamente, 8-10 minutos em banho-maria, é tudo.
Duas notas. Primeiro, como escrevi na entrada anterior, todas as indicações de tempo e temperatura se aplicam a ovos à temperatura ambiente, não retirados logo do frigorífico. Segundo, mais importante, pode-se duvidar de que estas manipulações, se não rigorosas, eliminem o risco de infeção bacteriana. Cuidado!