quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

Lagosta, em tempo de crise

Em tempo de crise, pode parecer snob, mesmo sádico, escrever uma nota sobre lagosta. Desculpar-me-ão se disser que é suscitada por ocasião especial, o passado dia de S. Valentim, e por o pretexto serem umas lagostinhas de Moçambique, congeladas, bastante saborosas - mas nada chega à lagosta norte-atlântica - e a 30 € o kilo. Não é preço de faneca mas também não é loucura. E permite fazer em casa, com igual qualidade, comparado com os preços loucos que nos cobram numa marisqueira.
Antes de ir adiante, uma nota sobre a lagosta atlântica. Refiro-me à do oceano do norte, porque as tropicais, que bastante usei em Angola, ao preço da chuva, e a que agora vem muito de Cabo Verde, são para meu gosto inferiores à da costa europeia e, principalmente, à lagosta açoriana. E esta para mim ainda ultrapassada pelo cavaco açoriano, a lagosta da pedra. Mas já indo para a costa americana de nordeste, que conheço bem, sempre me serviram como preciosidade as lagostas do Maine, de Long Island, etc. Para mim, ficam em terceiro lugar, ainda depois das tropicais.
Lagosta de primeira, a começar pela açoriana, não daria para nota. Apenas dizer o banal, porque a sua qualidade dispensa preparações complicadas: cozê-la em água do mar, comê-la o mais simples possível, para mim apenas com o tradicional "molho verde" açoriano de vinagreta de cebola, salsa, malagueta e açaflor.
Já as lagostas “de segunda” permitem usos culinários mais complexos, porque não é tão imperioso salvaguardar o seu gosto sem mais nada. Vou por três preparações que fazem as minhas delícias. Ressalve-se que duas das receitas são, originariamente, para lavagante, mas vão igualmente bem com lagosta, principalmente, como fiz há dias, com lagostinhas pequenas, de cerca de 200 g cada, que a congelação não estraga muito. São a lagosta suada à moda de Peniche, a lagosta à americana e a lagosta Thermidor.
De Peniche passou para o indispensável livro de M. Lourdes Modesto, “Cozinha Tradicional Portuguesa” (pág. 201). A lagosta é “sangrada”, cortada em anéis, viva (barbaridade!...), e estufada com cebola, alho, salsa, louro, tomate, azeite, vinho branco, aguardente, Porto, e temperada com sal, pimenta branca, colorau, malagueta e noz moscada. É muito boa mas não a minha predileta. Sendo rústica e com sabores fortes, prefiro comer coisa tão preciosa de forma mais elegante, como as duas confeções francesas.
A lagosta/lavagante à americana tem história bem conhecida. Pierre Fraysse dirigia um famoso restaurante parisiense, “Chez Peter’s”, um nome que evoca a sua experiência anterior como cozinheiro nos EUA. Diz-se que certa noite, já a fechar a porta, lhe apareceu um grupo de clientes especiais a quem não podia falhar e que pediram lavagante. Fraysse foi à despensa e teve de inventar qualquer coisa nova com o que havia, o marisco cortado vivo em pedaços, salteados em azeite, estufados numa base reduzida de chalotas, alho, cenoura, tomate, aguardente e vinho branco. Parece que começou por preparar a base enquanto se perguntava como resolver a falta de tempo para o tradicional, cozer os bichos em caldo. Daí a inovação para a época, cortá-los crus e estufá-los na base.
Porquê “à americana”? Aqui entra a fantasia de cada um. Mais prosaicamente, os convidados terão perguntado o nome daquela novidade e saiu-lhe a sua referência americana, possivelmente com sentido de “marketing” de associar o prato à marca do restaurante. Há quem diga que os convivas eram americanos e que ele os quis homenagear. Também que o que hoje denominamos é corruptela de “à l’armoricaine”, embora a cozinha armoricana não tenha nada a ver com esta receita.
Recorde-se que a base criada por Fraysse, com variantes, ainda hoje é usada para múltiplos pratos, de marisco ou de peixe, até uma receita de cogumelos que li em qualquer parte. E, como nada verdadeiramente se inventa, há quem diga que a base de Pierre Fraysse lhe veio da memória aprendida de velhas preparações do mesmo tipo, nomeadamente os camarões à bordalesa e os mariscos bonnefoy das tabernas de Paris.
Em todo o caso, a lagosta à americana está relativamente codificada e as variações entre as receitas publicadas são menores. Diferente é o da lagosta Thermidor, outro clássico da cozinha francesa de restaurantes do fim do séc. XIX. Parece-me que ainda no tempo de Escoffier não merecia muito empenho. Descreve-a em simples linhas, como lagosta ou lavagante cortada em metades, grelhada, cortada em fatias e gratinada com molho de nata à inglesa com mostarda. Livros mais recentes, como o Larousse Gastronomique, não trazem a receita.
Vi muitas na net e fiquei surpreendido com a diversidade e diferenças essenciais de dezenas de receitas, cada uma a pretender-se genuína. Como é vulgar, cada uma inova juntando qualquer coisa, de forma a que, no fim, há receitas que usam tudo o que há no frigorífico e na prateleira dos temperos.
Assim, tive de fazer a minha própria receita, mas com o rigor que me é possível. Nestas situações, vou pelo meu gosto, pelo meu estilo mas muito também pela interpretação do que fica omisso nos mestres. O que queria dizer Escoffier por molho de nata à inglesa com mostarda? O que me saiu soube-me muito bem e pareceu-me de fino recorte parisiense tradicional, bem como à minha convidada/parceira/etc. exigente. A receita vem no sítio do costume.

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