sexta-feira, 29 de junho de 2012

Gato por lebre

Vários amigos têm polemizado comigo, aqui neste sítio, sobre o que acham ser meu demasiado rigor quanto à clareza de identificação de receitas da nossa cozinha tradicional. Acho estranho, numa época em que é vulgar a exigência quanto à importância do rótulo. Também em crise, em que tudo o que for valorização da qualidade turística é essencial, mesmo nos pequenos pormenores, como seja um turista passar palavra a outro de que se come em Portugal um excelente prato chamado …, e esse outro, aldrabado num restaurante sem qualidade, ficar “à nora”.
Em alguns casos, até são chefes conceituados que prevaricam. Não adianta nada chamar “Brás de …” a um preparado com essa simples base, do excelente bacalhau à Brás, mas que confunde o cliente. Ao menos, no meu tempo de Escola Naval de miliciano, o Vaga Morta chamava “carne à Brás”, e era bem boa. Em casa, os meus miúdos deliravam, gostavam mais do que do bacalhau.
Ainda no bacalhau, porque é que se chama “bacalhau à Gomes de Sá” a porcarias inconcebíveis, quando a receita genuína, nem muito antiga, está mais do que disponível, é fácil e barata? Só porque nunca somos sérios, em nada. É diferente de eu pretender “normalizar” um bacalhau com natas, coisa nas ementas diárias, como se tivesse de ser o bacalhau à Conde da Guarda de mestre João Ribeiro (então chamavam-se mestre, não chefe!). É caso para dizer "bacalhau com natas há muitos, seu parvalhão!". E é verdade, há muitos e não faz mal, porque não é prato codificado no nosso património tradicional de cozinha (até ver).
Mas não posso exigir, em defesa do nosso património gastronómico, que não façam o que se está a ver por aí, à espanhola, croquetes que afinal são uns fritos de puré de batata com algum condimento a dar nome, carne ou presunto? Ou que não ofendam Bulhão Pato juntando às amêijoas mostarda ou piripiri (façam se gostam, mas inventem outro nome)? Ou que chamem alheira a uma coisa de que talvez muita gente goste - eu não - misturando em enchido pão e bacalhau, mais um refogado?
Já aqui referi que há alguns casos especiais. Primeiro, o de antigas variantes que usam a mesma designação, de acordo com enraizada tradição local, como as bens distintas açordas estremenhas e as sopas (açordas) alentejanas, ou como as variedades ribatejana e alentejana de tiborna. Também a ambiguidade de pratos recentes, ainda pouco codificados, que o uso fará sedimentar, como é o caso da sopa de pedra, afinal um achado turístico a aproveitar o essencial das sopas rústicas de meio país.
Deixei para o fim o que me conduziu a esta crónica, a designação abusiva e generalizada de “à lagareiro”, antes só para bacalhau, hoje para tudo o que se grelhe - quando, afinal, lagareiro não tem nada a ver com grelha -, também polvo, choco, um dia destes frango ou secretos, estes a última maravilha da gastronomia portuguesa, 50% de gordura. Ainda não consegui perceber o que é a norma geral do lagareiro. Fora ser um grelhado regado com azeite, já vi cobertura só com alho, só com cebola, com ambos, com pimentão, com ou sem salsa, batata assada ou cozida. Só faltam os picles, coisa essencial (!) da cozinha portuguesa e que, há tempos, definiam toda a carne de porco frita, com ou sem amêijoas!
O que é afinal o bacalhau à lagareiro (o termo evoca o lagar de azeite)? Vou por autoridade reconhecida, Maria de Lourdes Modesto (já que Bento da Maia e Olleboma o não referem, o que me faz sempre suspeitar da fraca “tradicionalidade” de uma receita). Tudo menos o que por aí se vê. 

Não é grelhado, não leva cebolada nem suas primas. O bacalhau é incubado em leite e temperado com alho, sal, pimenta e sumo de limão. Depois, é embrulhado em ovo e pão ralado, frito, regado com azeite e levado ao forno a assar, comendo-se com batata cozida. É o bacalhau à lagareiro que se faz em todo o restaurante de esquina?

Isto tem a ver com coisas bem enraizadas e que nos distinguem da restauração popular francesa, italiana ou espanhola, por exemplo. Somos pouco exigentes como consumidores. Nunca houve um grande gosto solidificado em escrita, debate, elaboração, sobre a cozinha tradicional. Se acham que estou a exagerar, basta googlar, coisa determinante para informação nos dias de hoje. A crítica gastronómica em Portugal está de rastos, ninguém se atreve a afrontar bonzos. A pontificar na cozinha, as velhas avós fizeram escola por toda a parte, mas hoje cada vez mais vejo entre nós até estrangeiros. A nossa maneira tradicional, na expressão que sempre ouvi à minha avó, é “à matroca”. Tudo vale, não há rigor, temos afinal a sabedoria máxima do mercado, “o cliente gosta, a gente faz assim”.

Aniversário

Passou ontem o segundo aniversário do Assinatura, um dos meus restaurantes prediletos, na interseção importante das linhas de qualidade e preço (e um dos melhores serviços de mesa de Lisboa, mesmo em comparação com restaurantes estrelados e muito mais caros). Henrique Mouro, muito simpaticamente, convidou-me ontem para jantar na sua mesa, a celebrar o acontecimento.

Não pude. Tinha outro acontecimento também memorável, o doutoramento honoris causa pela minha universidade, com organização a meu cargo, de um dos mais notáveis cidadãos portugueses, Rui Nabeiro. Aproveito para dizer que, não conhecendo o Sr. Nabeiro, mas tendo tido de o receber e conversar bastante com ele, fiquei com a ideia forte de que é o que hoje melhor se pode dizer de uma pessoa: é um "homem bom".

Só perco por um dia. Hoje é dia de festa privada muito importante, e lá irei ao Assinatura. Tudo isto para recomendar que lá vão (não hoje, que quero estar recatadamente com a morena). Vale a pena - desculpem a rima.

quarta-feira, 20 de junho de 2012

Cozinha da morena

Com toda a razão, a morena começa a chatear-se com essa de eu é que ser o criativo de cozinha, cá no ninho da águia. Afinal, foi ela quem me ensinou tudo o que me gabo de fazer muito bem de cozinha angolana (vejam aqui, aqui, aqui e aqui). E, pelo seu lado do “puto”, é mestra em cozinha tradicional portuguesa, principalmente transmontana (um dia convido o VNG - um gastrónomo a ler com muita atenção! - a cá vir provar). 

Este fim de semana, a morena desafiou-me a provar coisa dela inventada no momento, coisa parida de cozinheira em fase cigana de lua cheia, mas combinamos que tinha de ser “oh, simple thing!” e só com o que ela tinha em casa. Aqui vai.
Estufado simples de curgete e atum
1 curgete grande, 1 lata de atum, 1 cebola, 2 dentes de alho, 3 c. sopa de azeite, 1 folha de louro, 1 dl de polpa de tomate, 1 dl de vinho branco, sal, pimenta branca e preta (1:1), um toque de pimenta da Caiena, alcaparras, manjericão, queijo ralado. 
Fazer o refogado, bem picado. Juntar a curgete às rodelas e o atum desfeito grosso. Temperar, juntar o vinho e estufar a lume baixo, cerca de 15 minutos. Rejeitar o excesso de líquido da cozedura das curgetes. Juntar o tomate, voltear e aquecer a lume mais alto. Servir com queijo ralado e alcaparras.

É muito engraçado como até na cozinha nos sorrimos embevecidos com a ideia de "almas gémias".
E, como estou a ultimar o meu próximo livro de “nova cozinha açoriana”, lá ficará isto em versão ilhoa de “caiota guisada com atum, embrulhada em tomatada das ilhas”.

sexta-feira, 15 de junho de 2012

Mudam-se os tempos...

Li algures, sobre lapas e os Açores, que “existem muitas receitas para preparar-las [sic] e até há quem só goste delas cruas e vivas, ao natural. Mas a forma mais popular de as cozinhar consiste em grelhar-las [sic, novamente; assim como, na receita, mais do que uma vez, "colocar-las". Isto escrito por brilhante - segundo o seu CV - licenciada em letras e consultora de alta entidade oficial]”. 

Se isto tivesse sido escrito por quem debita de longe, sem saber, sobre queijinhos frescos e malagueta, vá lá. Neste caso, é por uma residente nos Açores - o que tem menos desculpa - mas interpreto isto como coisa não muito negativa, apenas efeito dos tempos. As pessoas conhecem é o seu tempo, não estudam o que foi o percurso até aí chegarem. Também confundem “habitual”, "usual”, “vulgar”, etc., com “popular” (como se diz no tal texto, quando este adjetivo, em gastronomia, tem conotações muito complexas).
Por simples efeito do que direi a seguir, o hábito do consumo das lapas mudou radicalmente nos Açores. Ao contrário do que escreveu a autora daquela frase, há algumas dezenas de anos, quando eu era miúdo, ninguém comia lapas grelhadas. Aliás, grelhar fosse o que fosse era coisa desconhecida nos Açores. Quem as comia cruas, as lapas, não eram “alguns que até há quem”. 

As “mulheres das lapas” deixavam os seus homens apanhadores a descansar depois da noite de frio, risco de queda das rochas, molhados com as vagas, e iam para a cidade (apesar de tudo, como me dizia a minha mãe, profunda conhecedora deste meio, no seu missionaridado cristão-progressista, sempre com tempo para uma "rapidinha" a fazer família de dúzia de filhos). Sentavam-se sonolentas -como me lembro, ai a minha gente, o meu povo! - com o cesto das lapas vivas à soleira da porta das tabernas (muitas vezes com o pitcheno ao colo adormecido com um pouco de pão molhado em vinho de cheiro oferecido pelo taberneiro). "Gente feliz com lágrimas", não é, meu caro João de Melo?
Compravam-se-lhes (como se viu atrás, os verbos são traiçoeiros, mesmo para alguém de letras!) as lapas por tuta e meia e comiam-se cruas. Excetuava-se a lapa miúda, para arroz de lapas, pão de lapas, etc. E a lapa com muita alga (“musgo”), para o excelente Afonso de lapas - que eu imito, aldrabadamente, com algas orientais aromatizadas a mar por banho prolongado, a quente, em “fumet” e um pouco de caldo de marisco.
O que mudou tudo foi o defeso muito rigoroso, talvez nos princípios dos 80s, não me lembro exatamente. Acabou a lapa crua e começou a importar-se lapa congelada da Madeira, onde a apanha era relativamente permitida. Obviamente, esta lapa não podia ser comida crua e começou com isto a grande voga da lapa grelhada. Nada mais simples, como explicação histórica, nada de "gosto popular". 

Claro que, não podendo as coisas voltarem atrás, há que considerar algum benefício. Pela experiência de cá de casa, até acho que, a ter-se mantido o hábito da lapa crua, muitos turistas não a comeriam. Como disse, é coisa que faz enjoar a morena, embora se babe por ostras cruas. Contradições… (ou, a sério, a importância da textura, para um gosto refinado).
E, quanto a açorianos, será só “há alguém que goste”? Ainda há um ano, no mais conhecido restaurante de peixe e marisco terceirense, em S. Mateus, vi desaparecer em minutos, por encomenda de gente local a correr para o balcão (e eu também), um alguidar que tinha chegado com grandes lapas vivas.

Nota - O passareco da figura é uma pega. "Honi soit qui mal y pense". Evoca só o palrar sem substância. 

domingo, 10 de junho de 2012

Coisas simples

De vez em quando, violo a regra auto-imposta de não publicar aqui receitas. Porquê hoje? Foi dia de afazeres, a impedir o habitual esforço culinário de fim de semana. Por isto, pode servir de exemplo. Mas desde já ressalto que não foi nenhuma coisa extraordinária de cozinha inventiva, só coisas simples mas que sairam bem. Como adivinho que muitos dos meus leitores gostam preferencialmente é de umas boas oportunidades de ficarem com ideias boas e fáceis, aqui vai o dia de hoje.
Para o almoço, uns lombos de cantaril, com espuma de marisco, limão e estragão. Se não quiserem ter o trabalho de os cortar, coisa bem simples, peçam à peixeira. Foram simplesmente salteados em fundo de azeite, com a pele para baixo e com golpes cruzados, para não encarquilhar. Sal e pimenta quando já um pouco firmes. A acompanhar, brócolos cozidos a vapor e rodelas de batata untadas com azeite, assadas a temperatura moderada e no fim tostadas sob o grelhador do forno. Como molho, um sabaião ou espuma de gemas, caldo de marisco, limão, um pouco de leite magro (exige bater mais do que se fossem natas) e estragão pronunciado mas não em excesso. Nada mais simples e muito bom, desde que feito com cuidado e esmero. E sem esquisitices. Normalmente, faço espumas no sifão. Desta vez, propositadamente, foi só bem batida com varas, à mão, e em lume muito baixo e bem controlado (nem sequer, pasme-se, em banho-maria).
Jantar de dieta habitual cá em casa é só de sopa. Foi de espargos verdes com mais sabores alentejanos. Couve flor a dar substância, metades distais dos espargos, sem os talos rijos, alho, um pouco de chouriço, queijo fresco. Tudo cozido em água, leite e um tanto mas significativo de caldo de galinha, umas colheres finais de azeite, tudo muito bem moído a creme e passado pelo chinês para não se notarem fibras. Novamente, nada mais simples.
NOTA - Já agora, também, fora de casa, mas igualmente simples e bom, o almoço de ontem, no Dona Bia, na Torre, um pouco a sul da Comporta. Restaurante de ar modesto, popular, despretensioso. Na zona, claro que de peixe e marisco, mas - surpresa! - com muito pouco do inevitável grelhado PVP. Muitos pratos de peixe bem trabalhados, claro que com enriquecimento dos arrozes da zona de Alcácer. Comemos uns excelentes filetes de peixe-galo, fresquíssimos, em polme bem feito, com uma açorda de ovas (quase mais ovas do que açorda) que, para meu gosto, estava um pouco mole de mais mas muito saborosa.

segunda-feira, 4 de junho de 2012

Cozinha angolana (continuação)

Afinal, agora que se passou já o muito agradável almoço, com amigos desconhecedores da cozinha angolana, devo completar a entrada anterior. A coisa foi mais complicada. Ela esmera-se, mais do que se esmera sempre, quando lhe vem o orgulho da terra natal, ainda por cima sob o olhar vigilantemente crítico da mãe boa cozinheira.
De aperitivo, foi só quitaba (há quem escreva kitaba, ao estilo quimbundo/kimbundo). Coisa muito simples e ótima. Amendoim torrado, do que mais se vende aí, moído com gindungo (piri-piri), barrado numas crackers ou simples bolachas de água e sal. Não digam logo que isto é banalidade antes de experimentarem. E tem truques. O amendoim deve ser muito bem moído, no moinho elétrico de lâminas, o tal dito 1-2-3, até fazer pasta homogénea e muito untuosa, por ter libertado o óleo. O gindungo, de preferência, deve ser fresco, mas pode ser difícil encontrarem-no cá. Usem seco, mas não os molhos preparados que por aí se veem.
A seguir, como entrada, o feijão com óleo de palma. Para mim, é o mais genuíno prato angolano porque é a base para todo o comer de gente pobre (mais pobre ainda é o simples funge, a papa de fuba - i. e., farinha - de mandioca ou milho, só mais água). Ou se come só o feijão, no dia a dia, ou se junta peixe ou o que calha, banana, enchidos, em dia de festa. Nada de muito diferente das variantes de pobre a "rico", determinadas pela economia, da sopa de couves aferventadas da minha ilha.
Creio que já dei a receita, que aqui vai novamente, resumida, e sem quantidades. Ó coisa excelentemente simples! Refogado de cebola, alho e tomate em óleo de palma. Mais o feijão e seu molho de cozer, ferver e deixar apurar bem. Tempero só de sal. O picante é indispensável, mas a gosto. Tradicionalmente, começa-se por se colocar no fundo do prato sumo de limão (importante para cortar um pouco de enjoativo que pode ter o sabor do óleo de palma) e gindungo (piripiri) picado muito fino, a gosto. O feijão pode ser vermelho, na versão da mãe, ou feijão manteiga, na versão da filha. Vou por ambas (ou melhor, que eu tenha cuidado, é mais prudente ir pela filha...). Ao servir, polvilhar bem com farinha de mandioca torrada.
Depois, o pirão, como descrevi na entrada anterior. A acompanhar, se fosse nos kimbos por onde eu andava, no Zaire, onde me ofereciam grandes jantaradas, seria marufo (ou malufo) um fermentado de frutos de palma, também usado destilado, mais forte. No Zaire meu querido, também o faziam com polpa do fruto de caju. Qualquer marufo sempre horrorosamente agreste e adstringente, a encarquilhar a mucosa bocal. O "nosso médico" em geral levava as cervejas. Só na minha despedida oferecida pelo inesquecível Timóteo, catequista protestante, é que ele se desfez no maior gasto, vinho do puto (garrafão de Abel Pereira da Fonseca, lembro-me bem...). 

Lembrando-me de tudo isto, servimos ontem cerveja e, como alternativa vinícola, coisa simples, um pouco rústica, mas de que gosto muito para o dia a dia, o tinto EA, de Évora. Foi à memória do Timóteo que, bastante mais velho do que eu, provavelmente já anda por outras paragens, sempre a remendar com adesivo a armação partida dos seus óculos. Ai, Angola, minha e da morena, e hoje tão desgostosamente estranha para nós - entenda-se bem, estranha em relação à Angola da libertação, com que tanto me solidarizei na juventude, a idade dos sonhos, também a dos sonhos de queridos amigos angolanos dos anos 60s.

No fim, não foi coisa angolana, mas podia ser, por tão simples e baseada no tal limão de que falei por contraste com o óleo de palma. Uma mousse de limão do meu irmão doceiro. Simples e excelente (há mousse de limão e mousse de limão!), a aligeirar refeição pesada. Como é dele, não descrevo.

NOTA - O almoço, prolongado por excelente conversa de várias horas, foi quadrangular: Angola, Beira litoral, Beira baixa, Açores. Só faltava o Brasil. E cada um conseguia trazer uma especificidade sua à conversa, mas sempre a integrar facilmente num quadro comum. A cultura portuguesa é muito forte e coerente na diversidade. Hoje, até em termos de situação económica, devíamos atender ao laço comum da afetividade entre lusófonos. É uma das experiências mais ricas que tenho tido na minha universidade. Ainda hoje, ao almoço, aprendi mais com o meu colega TJ sobre a sua Guiné do que tudo o que vou lendo na imprensa sobre o período conturbado que estão a viver. Mas creio que ele só me falou com grande sinceridade - e algum risco político - porque sentia da minha parte o desejo genuíno de compreender aquela terra que também é minha (claro que só simbolicamente, muito menos de que dele). A terra de Amílcar Cabral, amigo de todos os lusófonos (e Amílcar, que até era cabo-verdiano).

sexta-feira, 1 de junho de 2012

Cozinha angolana

Este fim de semana, para amigos especiais bons apreciadores, vai haver pirão, coisa emblemática da cozinha angolana, principalmente na zona costeira da área quimbunda (entre Catete e Cuanza). Vou excecionar, como dizem os ngolas, a minha regra de aqui não dar receitas. Devo esta exceção ao que tenho aprendido de bem comer tropical com a morena. 
Morena manda, quando tem memória mesmo que vaga de quatro gerações naquela terra, coisa que se intui e se sente com aroma de cravo e canela, também, em noite de poemas de Lorca, a confundir morena à Chico de chocalho na canela (e de família da Catumbela...) com morena cigana filha de feiticeira parida de lua cheia "preciosa en el aire" (ponham as vírgulas onde acharem melhor). 
E a lembrar que até o pateta (seria?) do D. João VI, comendo uma perninha de frango ou de galinha, decretou que a morena de Paquetá valia mais do que a Carlota Joaquina. “Porque eu sei e eu decreto que a morena é boa”.
Passemos ao sério, já chega de desvarios. A cozinha angolana não é muito variada, atendendo à enorme área do país e à existência de três etnias principais (bacongos, quimbundos, ovimbundos). Vive essencialmente do ubíquo óleo de palma, dos legumes do “lavra” (mandioca, batata doce, quiabos, abóbora, tomate levado do "puto"), do gindungo (piripiri), do amendoim (ginguba), da folha de mandioca (quizaca) - às vezes substituída pela da batata doce, menos amarga. Sobre esta base, a galinha doméstica, o cabrito selvagem ou a capota, no interior, o peixe fresco mas principalmente seco e salgado, no litoral.

Rei dos peixes secos é o cacusso (na foto), "kikuzo" em quimbundo, um peixe de laguna ou de foz de rio, de água entre salgada e doce, que os turistas que vão a Israel e almoçam em Tiberíades comem obrigatoriamente como preciosidade local, o "peixe de S. Pedro".

Como disse, pirão, ó coisa simples e tão boa, e sem precisar de nada que não encontrem no supermercado do costume. Peixe, com a respetiva sopa de peixe acompanhada com farinha grossa de mandioca a embeber com o caldo. Parecido, o muzongué, mais ao sul de Luanda, lá para Benguela. Mas talvez não seja assim tão simples, porque a nomenclatura das coisas básicas é traiçoeira, tão banais elas são que cada um diz como quer. Já ouvi chamar pirão ao simples funge, a papa de farinha de mandioca! Que, por seu lado, é funge porque feito simplesmente com água e com fuba (farinha), que sem mais nada é de mandioca. Mas também se faz funge com fuba de milho ou com mistura. Que confusão!
4 peixes pequenos, cacusso (cá, tipo cantaril ou redfish ou mesmo de pele escura, como o sargo, até a dourada); 2 dl de óleo de palma; 2 batatas doces grandes; 1 mandioca; 2 cebolas ; 3-4 dentes de alho; 2-3 tomates maduros ou 1 lata de tomate pelado; água (bastante, cerca de 1,5 litros); sal q. b.; gindungo q. b.; 300 g de farinha de pau grossa.
Refogar moderadamente a cebola e o alho picados no óleo de palma, acrescentar o tomate sem peles e sem sementes cortado aos bocados, acrescentar cerca de 1,5 l de água. Levantar fervura e juntar o peixe cortado em postas. Temperar. Cozer, cerca de 15 minutos, sem deixar desfazer o peixe.
Separadamente, cozer a batata doce e a mandioca, aos pedaços, escorrer e servir à parte.
Torrar a seco a farinha, num tacho e embeber com o sobrenadante gorduroso do caldo, colhido cuidadosamente com uma colher, sem ficar em papa.
Come-se o caldo e o peixe, em prato de sopa, temperando com sumo de limão. A farinha é servida ao lado e vai-se comendo à colher, molhando na sopa.

P. S. - Em homenagem a uma avó Mariana que lá está em cima conversando com outra avó Adélia sobre os predicados gastronómicos da neta e do neto.