segunda-feira, 4 de junho de 2012

Cozinha angolana (continuação)

Afinal, agora que se passou já o muito agradável almoço, com amigos desconhecedores da cozinha angolana, devo completar a entrada anterior. A coisa foi mais complicada. Ela esmera-se, mais do que se esmera sempre, quando lhe vem o orgulho da terra natal, ainda por cima sob o olhar vigilantemente crítico da mãe boa cozinheira.
De aperitivo, foi só quitaba (há quem escreva kitaba, ao estilo quimbundo/kimbundo). Coisa muito simples e ótima. Amendoim torrado, do que mais se vende aí, moído com gindungo (piri-piri), barrado numas crackers ou simples bolachas de água e sal. Não digam logo que isto é banalidade antes de experimentarem. E tem truques. O amendoim deve ser muito bem moído, no moinho elétrico de lâminas, o tal dito 1-2-3, até fazer pasta homogénea e muito untuosa, por ter libertado o óleo. O gindungo, de preferência, deve ser fresco, mas pode ser difícil encontrarem-no cá. Usem seco, mas não os molhos preparados que por aí se veem.
A seguir, como entrada, o feijão com óleo de palma. Para mim, é o mais genuíno prato angolano porque é a base para todo o comer de gente pobre (mais pobre ainda é o simples funge, a papa de fuba - i. e., farinha - de mandioca ou milho, só mais água). Ou se come só o feijão, no dia a dia, ou se junta peixe ou o que calha, banana, enchidos, em dia de festa. Nada de muito diferente das variantes de pobre a "rico", determinadas pela economia, da sopa de couves aferventadas da minha ilha.
Creio que já dei a receita, que aqui vai novamente, resumida, e sem quantidades. Ó coisa excelentemente simples! Refogado de cebola, alho e tomate em óleo de palma. Mais o feijão e seu molho de cozer, ferver e deixar apurar bem. Tempero só de sal. O picante é indispensável, mas a gosto. Tradicionalmente, começa-se por se colocar no fundo do prato sumo de limão (importante para cortar um pouco de enjoativo que pode ter o sabor do óleo de palma) e gindungo (piripiri) picado muito fino, a gosto. O feijão pode ser vermelho, na versão da mãe, ou feijão manteiga, na versão da filha. Vou por ambas (ou melhor, que eu tenha cuidado, é mais prudente ir pela filha...). Ao servir, polvilhar bem com farinha de mandioca torrada.
Depois, o pirão, como descrevi na entrada anterior. A acompanhar, se fosse nos kimbos por onde eu andava, no Zaire, onde me ofereciam grandes jantaradas, seria marufo (ou malufo) um fermentado de frutos de palma, também usado destilado, mais forte. No Zaire meu querido, também o faziam com polpa do fruto de caju. Qualquer marufo sempre horrorosamente agreste e adstringente, a encarquilhar a mucosa bocal. O "nosso médico" em geral levava as cervejas. Só na minha despedida oferecida pelo inesquecível Timóteo, catequista protestante, é que ele se desfez no maior gasto, vinho do puto (garrafão de Abel Pereira da Fonseca, lembro-me bem...). 

Lembrando-me de tudo isto, servimos ontem cerveja e, como alternativa vinícola, coisa simples, um pouco rústica, mas de que gosto muito para o dia a dia, o tinto EA, de Évora. Foi à memória do Timóteo que, bastante mais velho do que eu, provavelmente já anda por outras paragens, sempre a remendar com adesivo a armação partida dos seus óculos. Ai, Angola, minha e da morena, e hoje tão desgostosamente estranha para nós - entenda-se bem, estranha em relação à Angola da libertação, com que tanto me solidarizei na juventude, a idade dos sonhos, também a dos sonhos de queridos amigos angolanos dos anos 60s.

No fim, não foi coisa angolana, mas podia ser, por tão simples e baseada no tal limão de que falei por contraste com o óleo de palma. Uma mousse de limão do meu irmão doceiro. Simples e excelente (há mousse de limão e mousse de limão!), a aligeirar refeição pesada. Como é dele, não descrevo.

NOTA - O almoço, prolongado por excelente conversa de várias horas, foi quadrangular: Angola, Beira litoral, Beira baixa, Açores. Só faltava o Brasil. E cada um conseguia trazer uma especificidade sua à conversa, mas sempre a integrar facilmente num quadro comum. A cultura portuguesa é muito forte e coerente na diversidade. Hoje, até em termos de situação económica, devíamos atender ao laço comum da afetividade entre lusófonos. É uma das experiências mais ricas que tenho tido na minha universidade. Ainda hoje, ao almoço, aprendi mais com o meu colega TJ sobre a sua Guiné do que tudo o que vou lendo na imprensa sobre o período conturbado que estão a viver. Mas creio que ele só me falou com grande sinceridade - e algum risco político - porque sentia da minha parte o desejo genuíno de compreender aquela terra que também é minha (claro que só simbolicamente, muito menos de que dele). A terra de Amílcar Cabral, amigo de todos os lusófonos (e Amílcar, que até era cabo-verdiano).

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