domingo, 2 de setembro de 2012

Em Cabo Verde, o que comemos

Não posso dizer que tenhamos ficado com vasta experiência da cozinha tradicional de Cabo Verde, tal como a que já conhecíamos ou a que tínhamos investigado antes de lá ir. A primeira experiência, na Praia, ficou-se por pouco. Ao almoço, no hotel, comemos uma excelente posta de atum assado no forno, julgo que previamente marinado em sumo de limão, coberto com uma brunesa de legumes regada com leite de coco, tudo acompanhado com um bolo de arroz branco como raramente tenho visto tão bem feito. Mas lá nos disseram, honestamente, que aquilo era de "inspiração cabo-verdiana" mas não genuinamente tradicional.

Já ao jantar, porque a lista não oferecia nada de especial, fomos a um simples prego, muito bem feito - boa carne batida como se deve para prego, bem temperada com alho e pimenta preta - num excelente bar-esplanada do hotel, sobre a Prainha, refastelados à romana em divãs de aconchego de namoro. Isto porque no Plateau não conseguimos encontrar nenhum restaurante de cozinha cabo-verdiana. O Plateau alberga hoje, em todas as ruas, dezenas lojas de chineses intervaladas de quando em quando por restaurantes, mas uns bares de pizzas e hambúrgueres.

No Mindelo, por desventuras causadas pelos TACV, ou tínhamos tempo para ver a magnífica cidade de herança colonial, arquitetura rigorosamente preservada - muito mais do que na Praia - ou tempo para procurar um restaurante. 

Acabamos por ter uma experiência encantadora, um jantar de marisco na varanda (1 metro de largura!) do Chave de Ouro. É uma pensão à velha maneira portuguesa, decoração de antigas pensões lisboetas de africanistas em graciosa, um criado muito simpático, mas velhote a arrastar os pés. Para beber, pedi uma cerveja local, Strela, mas ele veio perguntar, mostrando uma Superbock, “não prefere esta?”. Simpatia caboverdiana é inexcedível.

O hotel da Boavista (Iberostar Club Boavista), onde fomos descansar depois do encontro com Cabo Verde real, com aquele que me ficou nha cretcheu (por eu ser ilhéu?), tinha boa oferta de restauração. Nos bares da piscina e da praia, boa variedade de componentes de saladas para combinar a gosto, com vários molhos bem feitos, minipizas, panquecas e seus melaços e xaropes, pequenos fritos de legumes cabo-verdianos, fruta, docinhos. Bebidas e cocktails, com e sem álcool, e sumos à discrição. As refeições principais eram num grande restaurante, em bufete. Mas antes, falarei do Gourmet, o melhor restaurante do hotel.

Espaço limitado, a exigir marcação, bem decorado, muito boa amesendação, bom serviço por empregadas ilhoas que não ficam a dever aos seus colegas lisboetas estrelados. Só dois menus, de cozinha elaborada, muito bons. Só dois, mais o suplemento extra de lagosta, mas dá para uma semana de férias. Todavia, sempre quase vazio! Por não se poder ir de calções e chanatas?… E era o único em que, por encomenda, se podia comer lagosta, um bicho mais do que suficiente para duas pessoas, por 23 euros! (os menus normais estavam incluídos no preço da diária). Único senão para mim, a lagosta vinha grelhada e um pouco seca. Pode ser esquisitice minha, mas marisco é por obrigação simplesmente cozido, de preferência em água do mar, como se fazia (faz-se ainda?) nas marisqueiras da minha ilha.

A acompanhar, vinho cabo-verdiano, “Chã”, coisa cuja existência desconhecia. Vinho da ilha do Fogo, de terras vulcânicas, como nas minhas ilhas. Com a lagosta, bebi o branco, muito agradável, elegante, meio-encorpado, de acidez e secura médias, um ligeiro toque doce e amariscado como o irmão ilhéu  verdelho dos Biscoitos. Mas casta diferente, a explicar isto: na versão crioula, “moacatel”. Não provei o tinto, também monovarietal, com a designação muito simples de “casta Tradicional”.

No fim, um grogue velho. Para mim, não há aguardente de cana (Brasil, Jamaica, Cuba, Madeira, etc.) que se compare ao grogue velho cabo-verdiano. Já não vou tanto é no “pontxe”, coisa adocicada com base em grogue, em que fervem melaço, grãos de café e limão. Curiosidade que talvez muito desconheçam: a macieza e o tom dourado do grogue velho não vêm de envelhecimento em madeira, mas sim em potes de barro. Lembrei-me do que vi em Tennessee, com os uisques caseiros de tipo Jack Daniel's.

O hotel anunciava que o seu bufete tinha sempre cozinha cabo-verdiana. Não é verdade, como me palpitou e depois confirmei junto de quem sabia. De cabo-verdiano foi cachupa uma vez (a ir só provar à pressa, depois do jantar de lagosta, e a não aprovar em relação à versão da Mena que faço ou à da Casa da Morna), uma vez canja, outra sopa de peixe, ainda lulas guisadas, outra vez cocada, como sobremesa. 

Tudo o resto era uma coleção de estufados diversos - vitela, porco, frango, coelho, até codornizes - repetitivos, a evocar o estilo cabo-verdiano (?) mas sempre a saber ao mesmo: refogado em óleo, bastante tomate, pimenta branca e malagueta (mas o picante não é tipicamente cabo-verdiano - ver nota, no fim), batata doce e mandioca a evocar África (mas normalmente com falta da abóbora), mas mais cenouras, curgetes e ervilhas que não vêm ao caso, assim como pimentos diversos. Em geral, faltava o milho, o ingrediente mais característico da cozinha de Cabo Verde, a planta que se vê semeada em tudo o que é canto arável de terra, mesmo que uma nesga à beira da estrada.

No entanto, não critico esta opção por uma oferta de cozinha “à moda de Cabo Verde", desde que seja claramente identificada como tal. Até é um projeto que estou a finalizar para ementas turísticas da hotelaria micaelense. O que me suscita dúvidas é que, ao que apurei, toda essa cozinha foi concebida desleixadamente por um chefe espanhol (nacionalidade da empresa do hotel), lista de uma única receita de base com muda isto ou aquilo. Ao ver um prato, eu no fim já sabia a que me saberia.

Para além do que comi, e de coisas que já conheço e que me faltaram, como o moje, o peixe assado ou o xerém, ouvi gabar pelo pessoal de mesa a variedade de doces da cozinha cabo-verdiana - gufongo, variados fritos de batata doce, banana ou abóbora, cuscus com mel de cana, etc., que não encontrei no hotel. Era tudo gente gulosa, de sorriso escancarado (ai, sorriso ilhéu, também da minha gente) a falar nos seus doces!... e eu com muita conversa a atrapalhar-lhes o trabalho - mas no fim já vinham meter conversa de comidas e de como era em "tu téra". Comigo a tentar desembrulhar-me em crioulo, coisa divertida. Senhores, há turismo e turismo!

Fiquei a conhecer algumas receitas. Das receitas que aqui deixo como exemplo, uma, a emblemática cachupa, já publiquei, oferta de excelente cozinheira, para além de outras qualidades, a Mena Pepetela. A sopa de atum e a cocada, a comporem refeição, aprendi-as agora e fiz hoje enquanto estava próxima a memória dos sabores. Ajustei por mim as quantidades (fazendo equivalência com a “chávena e copo” que me deram como receita) e a técnica. Creio que, não sendo especialista, não me saiu mal. Ontem já tinha feito, agora aprendida, uma canja de galinha, com idêntico apreço.

Canja de galinha
½ galinha, 120 g de arroz*, 1 c. de sopa de óleo, 2 dentes de alho, 1-2 tomates maduros, ½ mandioca, uma batata doce, 1 inhame, 1 folha de louro, hortelã, sal a gosto, pimenta, malagueta se se quiser.
Cortar a galinha em pedaços pequenos, esfregar com sal e pimenta e com o alho pisado em sal, mais o louro. Deixar temperar algum tempo. Picar grado a cebola e refogar. Juntar a galinha e seu tempero. Quando alourada, juntar o tomate picado e voltear. Adicionar água q. b. e, ao ferver, o arroz. A seguir os legumes, em brunesa. Deixar apurar. No fim, pimenta e hortelã.
* Disse-me uma jovem animadora que na sua casa faziam com massa. Variação de arroz e massa, como em Portugal?
Sopa de atum
500 g de atum fresco*, 2 c. sopa de óleo, 2 cebolas, 3 dentes de alho, 2 tomates, 1 c. Sopa de massa de pimentão (opcional), pimenta, sal (e malagueta), farinha de milho (rolon) q. b. para fazer a sopa um pouco cremosa, água, coentros.
Colocar o atum a refogar, com azeite, cebola, tomate, alho, pimentão, pimenta, sal e malagueta, mexendo a desfazer o atum. Adicionar a água. Quando ferver, juntar cerca de meia chávena de farinha de milho, e deixe ferver até ficar apurado. No fim, juntar um molho de coentros picados. 
* Na falta, creio que não sairá mal a sopa com atum de conserva. Também me disseram que, em vez da farinha de milho se pode usar cuscus de milho.
Cachupa rica
500 g de milho branco pisado grosso, 250 g de feijoca, 250 g de feijão vermelho, 250 g de entrecosto, 250 g de carne de porco, 150 g de cachaço de vaca, 1/2 chouriço, 1/2 morcela, 100 g de toucinho, ½ frango, 1 repolho pequeno, 2 batatas doces, 1 mandioca, 1 cebola grande, 4 dentes de alho, sal, pimenta, louro, eventualmente piripiri.
Cozer separadamente, sem sal, milho branco pelado, feijoca e feijão de pedra (vermelho). Cozer as carnes e os enchidos. No caldo da carne, sem as carnes, cozer, em bocados grandes, repolho, batata doce e mandioca, bem como a cebola e o alho picados. Misturar  as carnes, o milho, o feijão e os legumes cortados em pedaços pequenos. Temperar com sal, pimenta e louro, molhar com os caldos e deixar apurar.
Cocada
10 ovos, 250 g de açúcar, 300 g de coco ralado, casca ralada de 1 limão, 125 g de manteiga derretida, sumo de ½ limão.
 Bater muito bem o açúcar com a manteiga derretida, os ovos (sem separar gema e clara), a casca ralada do limão e o sumo do meio limão. Adicionar o coco envolvendo bem sem bater. Verter a mistura numa forma bem untada com manteiga e levar a cozer em banho-maria cerca de 50 minutos em forno médio (180º). Depois de cozido deixar arrefecer um pouco e desenformar. Servir frio, cortado em cubos. 
NOTA - Tempero é coisa importante na cozinha cabo-verdiana, mas pela quase ausência. O sabor é só dos ingredientes. Como repetidamente me disseram, "tempero não é preciso, vem das coisas. Só pimenta, mas só desta" - e apontavam para a pimenta branca que estava na mesa. No entanto, diziam que havia quem gostasse de picante. De picante, ao que apurei, umas malaguetas do tipo das malaguetas compridas e estreitas que se vendem cá (diferentes da malagueta larga achatada dos Açores), mas um pouco mais pequenas e verdes. Também o muito bom "pimento", verde, cónico, com cerca de 10 cm de comprimento, de polpa pouco espessa e mole, muito saboroso e quase nada picante.

1 comentário:

  1. Já estou a salivar e ainda mal passa das 8... Depois de ter conseguido perder 26 quilos num ano, suando-os e submetendo-os a uma estrita ditadura de peixe e sopa, vou ter de deixar de frequentar o "Gosto..."

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