terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Mais truques


Dei por que este fim de semana não escrevi e tenho de fidelizar leitores. Aqui vão, à pressa, mais uns truques do que julgo ser boa técnica.
Ervas. Habitualmente só junto ervas quase no fim dos cozinhados, muito menos as moo, com uma exceção, a de as incluir no refogado inicial. O louro é caso bem conhecido e até o retiro depois de tudo refogado.  O outro caso são os desprezados talos de salsa e coentro. Picados e juntados à cebola e ao alho, ou às chalotas, dão excelente refogado. Relembro também, como aqui já disse, os grelos da cebola quando já velha e o bolbo é para o lixo.
Ovos. Em muitas receitas, é juntar apenas ovos inteiros, mais ou menos batidos. É como estrelar ou escalfar um ovo inteiro, sem usar do requinte de trabalhar separadamente gema e clara. Há dias, notei uma das coisas que dá fama a um aliás banal tiramisu mas excelente quando feito pela morena. Nada de bater os ovos inteiros. Primeiro as gemas batidas com o açúcar, só depois incorporar delicadamente as claras em castelo. Isto serve também para melhorar excelentemente muitas massas ligeiras, como crepes, panquecas, waffles.
Bife. À marrare ou à café, minha perdição como já aqui tanto discuti, a propósito de “à” café ou “com” café. Creio que não referi um truque banal, tão banal que esquecemos, mas importante. O bife é primeiro frito e o molho vem depois. Entretanto, reserva-se o bife, o tempo do molho. Importante, vejam o que ele ainda destila de suco já depois de retirado da frigideira e repousado. Este suco, regressado à frigideira à última da hora, é essencial para a qualidade do molho.

sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

E mais arroz


Na minha entrada de há tempos sobre arroz, falando da excelente cozinha hispano-mediterrânica de arroz, disse que o meu favorito não é nada a vulgar “paella”. É de longe o “arroz a banda”, que se come em qualquer bom restaurante da região de Valência. Também o excelente “arroz negro”, com tinta de choco, creio que pouco conhecido entre nós. São casos exemplares de uso obrigatório de arroz tipo japonica, como o carolino, sem precisar de bombas ou outros tipos de arrozes valencianos. Vão pelo carolino.
A receita que faço de arroz à banda foi recolhida por Carmen de Sans, uma conhecida gastrónoma espanhola, em primeiro lugar na minha lista de livros de cozinha espanhola e foi-me garantida como de alta qualidade pelo meu colega Pepe Ginés, um grande garfo de cozinha e de comer. Para ficar bom, siga bem a receita, apesar de trabalhosa. Mas vale bem as duas ou três horas de confecção.
1 kg de peixes frescos variados (pescada, mero, corvina, garoupa), 1 kg de mariscos variados (camarão, mexilhão ou amêijoas), 1/2 kg de peixes pequenos (carapaus ou sardinhas), 500 g de arroz carolino, 3 dl de azeite, 1 cebola grande, 1 cabeça de alho, 1 tomate bem maduro, 1 c. sopa de massa de pimentão, açafrão a gosto, 6 grãos de pimenta branca, 1 folha de louro, um raminho de tomilho, sal.  
Fazer um caldo de peixe abundante com os peixes pequenos e as cabeças dos outros. Coar e reservar. Deitar numa panela 1 dl de azeite, aquecer e refogar a cebola em rodelas finas. Cobrir com os peixes e mariscos, primeiro os peixes mais duros e, sete minutos depois, os mais brandos, por cima. Juntar o sal, a pimenta, o louro e o tomilho e regar com caldo de peixe, a cobrir tudo. Cozer durante 15 a 20 minutos, sem deixar desfazer o peixe, que se retira e se mantém quente. Noutra panela, aquecer o azeite restante e alourar o alho pelado e pisado, o tomate picado grosso, o sal e a pimenta, a massa de pimentão e o açafrão. Salteia-se o arroz, rega-se com a quantidade de caldo para ficar seco no fim da cozedura (cerca de 1,5 vezes a quantidade de arroz) e deixa-se cozer. Leva-se ao forno, a dourar. Os peixes, aos bocados, são servidos separadamente (daí o nome de arroz à banda), acompanhados por molho “salmorreta”.
A “salmorreta” é obrigatória para arroz à banda mas vai muito bem com muita outra coisa, até simples peixe grelhado.
Picar 3 dentes de alho esmagados e misturar com um tomate assado e pisado, salsa picada, 1 c. sopa de vinagre, sal e pimenta e caldo de peixe para mistura não muito diluída. Cozer durante 5 minutos. No prato, tempera-se o arroz com este molho, antes de servir os peixes por cima.

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Cocotte

Às vezes, perco dias e dias a tentar dominar minimamente a técnica de alguma coisa que me atrai. Porque, como já disse e redisse, in principio erat technica. Por exemplo, há algum tempo, eu que me gabava de dominar bem a cozinha chinesa (por leitura, ensaio e contraprova), dei por mim como ignorante da japonesa, a que hoje me rendo muito mais. Comprei livros, gastei montes de coisas - até simples arroz! - para irem para o lixo até me parecerem sairem-me bem. E para quê? Obviamente que não para fazer cozinha japonesa - vou a um bom restaurante, ai, faliu o Aya! - mas para me sentir a dominar minimamente a respetiva cozinha de fusão, coisa muito séria e que muito me desafia mas que vejo frequentemente reduzida a brincadeira de niguelas.
Mas a técnica, senhores! Acreditem que nunca escrevo nada neste espaço sem muitas horas de correção do que invento, porque há muita imaginação que não resiste à prova dos nove. Acho piada a algumas coisas inventivas que leio em alguns blogues, apesar de tudo diferentes de outras inconcebíveis que se limitam a ser cópias ou “adaptações” de tias do que leram na revista do cabeleireiro. No entanto, o meu traquejo dá-me para ler e pensar que o homem não testou bem isso, não vai sair grande coisa, ou então gostou para si mas não testou para maior público. Ou que saiu coisa jeitosa de cozinha caseira, desculpavelmente rústica, mas daí para cozinha erudita…
Ainda hoje, em almoço de família, uma matriarca boa cozinheira se espantou por a morena dizer que, há uns sábados atrás, quatro de seis experiências nossas de sopas, divertidas mas ingloriosamente trabalhosas, tinham ido para o lixo e que nos tínhamos divertido imenso com isso, fim de semana hilariante. “Porra, que porcaria, quem diria!”. E eram simples sopas, aparentemente muito criativas. Para o lixo. Claro que não eram sopinhas de legumes. Quanto tempo demora a afinar um prato num triestrelado?
A minha última maluqueira é a cozinha de “cocotte”. As horas que me tem custado! É excelente, na minha vida de cozinha a dois, ternura de olhos nos olhos, sabores de comida a temperarem só ligeiramente outros sabores de vida muito mais importantes. A coisa essencial é um pequeno pote individual, hermético, a ir a banho-maria. Compram-se em lojas especializadas, mas há alternativas. Frascos de iogurteira, por exemplo. Hoje, pequenos boiões de conserva, com o seu típico fecho, de que despejei o bom conteúdo de foie gras. Vejam a figura. 
Não vou dar receitas, porque, nestas minhas experiências, já vão por muitas dezenas. Vou por regras gerais. Recomendaria uma visão de prato de cocote em três andares. No fundo, alguma coisa sólida mas porosa, a recolher os sucos do que vem de cima. Qualquer coisa absorvente, tosta esmagada grosso, umas migas soltas, broa, um estufado de legumes concentrado, recheio de alheira ou outros enchidos, "corned beef" desfeito, cubos de presunto, atum desfeito grosso, cebola picada muito grada e ligeiramente refogada, muito mais.
O andar do meio é semi-mole. Queijos, pastas, iogurtes, legumes moles, mariscos, conservas. O de cima é o que dá suavidade ao conjunto. Mais banalmente, um ovo, a semicozer com o resto da cocotte em banho-maria. Se não ovo simples, então, muito bem, de codorniz. Também qualquer outra coisa mole, creme de queijo, aveludado grosso de qualquer caldo, tomatada, tempero com ervas, derivados de maionese.
Façam as contas. Indiquei cerca de 6 escolhas por andar. Em cálculo combinatório, três andares, é 6x6x6=216. É muita escolha!

E ainda fica outra coisa, mas esta é mesmo malandrice de gourmet. Que tal soprarem um bom fumo de madeira de árvore de fruto (mas não madeira resinosa) para dentro do frasco, antes de o fecharem? É preciso ter o aparelho fumigador, já é requinte. Isto é só gozo com quem acha que eu sou injusto e sobranceiro para com as tias da blogosfera culinária.

Daqui a dias, festa de Babette


Tenho no próximo sábado combinação de jantar com casal de queridos amigos, até afilhados. É coisa que me preocupa, já ando a pensar nisto, como a Babette pressionada pelo regresso a casa. São “amigos do peito”, merecem tudo. Mas, afinal, nos tempos de hoje, é patetice, convida-se para o restaurante, o esmero em casa deixou de ser visto como prova de amizade. 
Claro que não vou dizer o que já está na minha cabeça como ementa e nas notas do iPhone como lista de compras, mas vou-me servir de uma receita minha, julgo que de alta qualidade, para mostrar o que me merece um bom jantar de amigos. Esta receita, que já vem no meu livro,  é um assado de três carnes cada uma a saber ao seu caldo, cada uma aromatizada como se deve à sua maneira.
Carnes e caldos. 500 g de peitos de frango do campo, 500 g de lombo de porco, 500 g de carne de vaca para assar, miúdos de um frango, 4 cebolas ou 8 chalotas, 2 cenouras, 3 talos de aipo, 1 couve lombarda, 5 dentes de alho, 70 g de bacon, 4 ovos, 3 c. sopa de manteiga, 1 ramo pequeno de salsa, 1 ramo de salva ou de alecrim, 1 raminho de estragão, 10 cogumelos grandes, 1 tira de casca de limão, 1 copo de vinho branco, 1 cálice de aguardente, 2 cravinhos, 4 grãos de pimenta da Jamaica, sal, pimenta branca, pimenta preta. 1,5-2 pães grandes, saloios, 1 dl de vinho dos Biscoitos ou Porto, 150 g de morilhas secas, 1 caiota e 1 alho francês, 100 g de nozes (ou avelãs, pinhões ou pistáchios, à escolha), 4 ovos. 
Semi-cozer as carnes separadamente, em caldos, como indicados a seguir, em que os legumes ou outros ingredientes cozeram durante 15 minutos antes da adição das carnes. 1. Frango. Ferver durante 8 minutos em água com uma cebola, uma cenoura, os miúdos, um ramo pequeno de salsa, casca de limão, sal e pimenta branca. 2. Porco. 10 minutos em água com um copo de vinho branco, 1 cebola picada com cravinho, 2 dentes de alho esmagados, 1 cenoura, sal, pimenta preta e um ramo de salva ou de alecrim. 3. Vaca ou vitela. 15 minutos, em água q. b. com 1 cebola, 2 dentes de alho, os talos de aipo, os cogumelos aos quartos e previamente salteados, pimenta preta, pimenta da Jamaica, um raminho de estragão, 1 dl de vinho do Porto e 1 cálice de aguardente (muito importante: todo este caldo sem sal!). Remover as carnes, escumar e coar bem os caldos e reservá-los. Guardar os fígados de frango. Quando arrefecidas as carnes, cortar os peitos de frango, a carne de porco e a carne de vaca aos cubos pequenos, de 1,5 cm. Polvilhar os cubos de carne de vaca com um pouco de sal fino.

Entretanto, deixar reduzir até molho muito espesso e gelatinoso o caldo de vaca. No fim, devem ficar apenas 2-3 c. sopa. Deixar o pão a embeber em leite com vinho dos Biscoitos. Incubar as morilhas em água quente. Saltear demoradamente, em azeite, os legumes picados, juntar o pão e as morilhas, voltear um pouco mais e moer, com os frutos secos. Continuar a ferver mexendo sempre até ficar pasta bem consistente, a colar queimado ao fundo da panela. Depois de arrefecer, formar um rolo com esta massa e com os cubos das três carnes, deixando por fora a mistura de pão, que deve ser em quantidade para envolver completamente as carnes. Envolver completamente com bastantes folhas de couve lombarda, atar e levar a forno médio (170-180º) durante cerca de 45 minutos, até a couve estar bem crestada.

Servir cortado às fatias, sem a hortaliça, com uma salada simples (alface ripada, canónigos, agrião), com riscado abundante de um aveludado escuro de carnes, clássico. Por exemplo, preparar um roux escuro de 1,5 c. sopa de manteiga e 1,5 c. sopa de farinha e molhá-lo com metade do caldo de frango e metade do caldo de porco, para aveludado. Rectificar o tempero e juntar 2 c. sopa de vinho do Porto, um toque de sumo de laranja. Ferver até boa consistência e acrescentar a redução gelatinada do caldo de vaca, em quantidade que não resulte em sabor muito excessivo dos temperos da redução.  Opcionalmente, um toque de estragão.
Quer mais acompanhamento? Espargos, endívias cobertas com o molho, umas fatias de presunto de Parma (só este!), cebolinhas glaciadas/caramelizadas, couve flor salteada em manteiga. Gosta de batata? Então só uns montinhos de puré, com gema de ovo, pimenta preta e noz moscada, formados e a levar ao forno a crestar.
Que trabalheira, não é? Mas olhe que vai ser compensado pelo olhar de despedida dos seus convidados. A menos que prefira levá-los a jantar ao “fast food” da esquina ou, “melhor”, àquele restaurante que diz que faz um excelente risoto de bacalhau a acompanhar pataniscas de bacalhau (este foi conselho que li este fim de semana ao nosso mais “venerando” crítico, que só mudava o risoto para arroz à portuguesa). Ou que prefira deslumbrar os amigos com um rosbife servido com salada russa e batatas fritas às rodelas (idem).

P. S. (24.1.2012) - Só agora reparei que a versão original deste texto tinha muitos erros de edição. Estão corrigidos. Peço desculpa aos leitores.

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

Truques e tricas - sopas (II - Caldos/fundos)

Continuando com as sopas, passo para coisa mais difícil, os caldos de base, tecnicamente ditos os fundos. Podem bem ser sopa mas são muito mais, base de molhos, líquido de estufados, para regar assados, muito mais coisas. Dava muita conversa, mas acentuo o papel de um fundo num molho. Em muitos molhos clássicos mas também modernos, o molho parte de um aveludado, que é um "roux" (farinha alourada em manteiga), diluída num fundo, como na banal técnica de um béchamel. 

Até me cai tão bem uma boa chávena de caldo, ao deitar! 

Hoje vou falar deles como sopas, o resto facilmente adaptam. Mesmo como sopa, há níveis diferentes: os caldos na maior exigência, tipicamente os consomês; os caldos acrescentados com mais coisas; as sopas de “substância”. Também, coisa ótima para muitos usos, caldos concentrados de caça ou de carne (mais facilmente se incluindo mão de vaca) dão geleia, depois de arrefecidos.
A importância do caldo é tal que uma das minhas receitas de maior sucesso é simplesmente um “patê” (quer dizer, uma coisa a ir ao forno envolvida em massa) de três carnes, galinha, porco, vaca, mas cada uma previamente cozida em caldo bem diferente e depois cortada em cubos e misturadas as três ("Gosto de Bem Comer", pág. 75). Saberá tudo ao mesmo? Garanto que não.
Ao contrário do que escrevi sopre as sopas de hortaliças ou legumes, defronto-me neste caso com uma maior dificuldade. Então, tudo era relativamente simples, mesmo com boa técnica. Por simples quero dizer duas coisas essenciais na vida de hoje: rápido (o que também quer dizer pouco trabalhoso) e económico
Um bom caldo de base (fundo) é o oposto. Em muitos casos, por exemplo para base de uma sopa “farta”, para um molho do dia-a-dia ou para um estufado ou guisado, é perfeitamente razoável que se recorra a um produto industrial de qualidade (já aqui chamei a atenção para uma nova linha de caldos, em gel, que não têm nada a ver com os cubos tradicionais). C’est la vie! Se vai oferecer um bom jantar “a deslumbrar”, que certamente lhe vai dar trabalho, não é o trabalho extra do caldo que vai pesar muito. Não o fazer pesaria muito mais na qualidade. 
O compromisso é o meu hábito: algum tempo de trabalho - com o meu pequeno consumo, basta-me uma vez por mês - para fazer uma boa quantidade de cada caldo que depois distribuo, concentrado, em doses adequadas e que congelo, em sacos pequenos de fecho hermético, que não ocupam tanto lugar como as caixas. Não perde qualidade, só exige é espaço de congelador. Já agora, um truque. Por vezes, preciso de menos do que cada dose congelada. Como se sabe, nunca se deve descongelar e voltar a congelar o resto. Mas, como faço, há sempre um ponto no micro-ondas que, sem descongelar, já dá para cortar a dose de que se necessita. 

Noutros casos, sei antecipadamente que, durante a semana, vou dar vazão a uma boa dose de caldo. Então, fica no frigorífico, onde se aguenta bem uma semana. Em casa de família, creio que será o mais adequado, pelo menos para o caldo de aves, o que vai bem com tudo, até num risoto de marisco (quem quiser que me peça a receita)!
Há quatro caldos de base, bem diferentes. Melhor, seis, porque os de aves/caça e carne desdobram-se em duas variantes, clara e escura. Os quatro são marisco, peixe, aves, carne. Vou esquecer o de marisco, porque, em geral, para mim, caldo de marisco é simplesmente a água de os cozer, sem qualquer tempero, quando muito reforçada com mais fervura do esmagado de cabeças e cascas.  Se tiver de o temperar, apenas tomate, salsa, açaflor, eventualmente um toque de estragão. 
Os outros só diferem naquilo que usamos como base e no que juntamos ao caldo. Vai a meu gosto e segundo o meu uso (habitualmente, como disse, concentrando bem e guardando no congelador, distribuído, para diluir na altura). Quanto a concentração inicial, coisa básica: num caldo, a água inicial é só a necessária para cobrir os sólidos. Levar à fervura, tapar, passar para lume baixo e cozer durante 20-30 minutos o de peixe, 30-40 minutos o de aves, 50-60 minutos o de carnes. Eu vou pelo tempo menor, para suavizar o caldo (exceto quando, propositadamente, o concentro, como disse).
Peixe (“fumet). Restos de peixes nobres (cabeças, espinhas, bem lavadas para não levarem nenhum sangue) ou peixe inteiro barato (carapaus, fanecas, etc.). Um pouco de azeite, cebola em rodelas (não inteira, porque o tempo de cozedura é curto), alho porro (idem), cogumelos, vinho branco, salsa, sal, pimenta branca. Acho que tudo o que vier a mais prejudica o essencial, o sabor suave do peixe. Abro exceção para um toque de funcho ou de aneto, que vai muito bem com tudo o que é peixe.
Aves. Miúdos de galinha - a meu gosto e para alguns usos acrescentando um fígado extra. Cebola (inteira), alho, alho porro, vinho branco, salsa. Mas a avançar mais do que o “fumet” e a sua salsa, também cenoura, pimenta branca e preta, pimenta da Jamaica, louro, tomilho, casca de limão e, no fim, sumo do dito. Em contrapartida, para meu gosto, os cogumelos são dispensáveis, notam-se pouco. No caso do caldo de aves, começa a entrar a variante claro-escuro. 

Se crescer uma carcaça de ave, podem levá-la ao forno a dourar bem, esmagá-la e juntar ao caldo, a escurecer, mas moderadamente. Há quem, para caldo escuro, também aloure no forno os vegetais, antes de os pôr a cozer. É gosto de cada um, faço no caldo de carne escuro mas no de aves acho que esforça o sabor. Claro que, em qualquer caso, é obrigatório aproveitar para o caldo os sucos da assadura, diluídos com um pouco de água quente. Evidentemente que tudo isto vale para o melhor caldo de aves, o de caça, obrigatório quando nos ficam sempre as carcaças de perdiz, galinhola ou codorniz depois do jantar. Esqueçam que os convidados podem ter levado as ditas à boca, a roer a carne. Fizeram muito bem...
Carne. Mão de vaca, mais alguma carne pobre (aba, cachaço, chambão), eventualmente chispe ou toucinho. Mais avanço nos sabores dos temperos: a mais de tudo o que ficou dito, mais alho, bastante aipo, cravinho espetado na cebola, pimenta preta só, não branca, salsa, tomilho, cerefólio, um toque de estragão (cuidado, tem sabor muito acentuado). Não obrigatoriamente, aguardente e/ou vinho generoso, Outra vez o claro-escuro, e aqui com maior importância. Para escuro, é só arranjar antes a mão e o chispe, levar os ossos ao forno a assar bem, se possível esmagá-los com martelo e só então juntar ao caldo. Juntar também uma fatia de osso buco, também ido ao forno e regressado ao caldo. Por vezes, se lhe vou dar uso posterior (porque frequentemente uso essas coisas depois de fervura, para suavizar), cozo à parte, só em água, um pedaço de presunto ou de chouriço e uso um pouco deste caldo para reforçar, ligeiramente, o sabor do caldo de carne, misturando a gosto. É o que faço também na sopa do cozido, porque não cozo juntamente as carnes e os enchidos.
Em qualquer caso, coisas de técnica básica. Atenção à água, não volto a dizer, e neste caso muito mais crítica! Depois, um caldo coze muita proteína, que coagula. É importante escumar com frequência. No fim, não basta separar os grados. Deve-se coar grosso e a seguir filtrar por pano ou papel. Para muitas utilizações, basta isto. Noutros casos, é desagradável ver-se ou comer-se a gordura, principalmente, para meu gosto, a gordura enjoativa da galinha ou do pato (porque, esqueci-me de dizer antes, também se pode fazer um excelente caldo de pato). Deixa-se no frigorífico umas horas e facilmente se remove com uma colher ou uma espátula (frias) a gordura solidificada, à superfície. Também se faz facilmente passando à superfície do caldo arrefecido papel absorvente.

Mais requintadamente, clarificar, tornar o caldo transparente, como deve ser um consomê. É voltar a cozê-lo, durante meia hora, com 2-3 claras batidas quase em castelo e com as respetivas cascas, esmagadas. Ter cuidado com o que daqui resulta em concentração do caldo, pelo que os temperos, principalmente o sal, só devem ser corrigidos no fim.
Que fazer com um caldo destes, assim requintado? Já não é questão de técnica, é de criatividade culinária. E já lá vai o tempo em que, em qualquer grande restaurante, eram emblemáticos o consomê, a terrina e o suflê, que demonstravam a maestria culinária e a inventividade quanto aos ingredientes.
NOTA - Passei um pouco por alto o caldo de mariscos, mas há uma dica importante. Mesmo que coma mariscos já cozidos, as cascas e cabeças ainda ficam com muito suco. Não vão para o lixo! Escorra bem e congele-as, antes ou depois de bem esmagadas. Se forem restos de um prato temperado (caril, etc.) comece por as lavar bem. Vão dar um bom caldo, quando se lembrar de as ir buscar esquecidas no congelador. Também uma base de "marisco à americana". Em alternativa, uma manteiga de mariscos. Esqueça que os convidados podem ter chupado as cabeças! Porcarias há muitas...

Por exemplo, e à baila. Há dias, num centro comercial com cinema, como é costume a minha mulher e eu fomos à casa de banho antes do filme, não fosse haver urgências depois. À saída, vinha indignada. "Olha, uma empregada de qualquer restaurante, não há dúvida, vinha de uniforme e avental, saiu da sanita e não lavou as mãos". O pior foi que, havendo ainda uns minutos para o seu único vício, lá quis a minha morena um café. Quem havia de lhe servir o café?... Eu ainda tentei ajudar, "repara que ela não tocou na borda da chávena". A sério, isto tem de ser dito às claras, porque protestei sem sucesso. Foi no Fonte Nova de Benfica, com uma empregada do restaurante da cave, junto aos cinemas. 

Especialistas...

O Diário de Notícias, penso que numa cruzada de publicitação internacional dos nossos produtos gastronómicos, tem vindo a entrevistar pessoas que opinam sobre o que temos do melhor do mundo. Pensar-se-ia que fossem peritos com credibilidade nos mercados importadores, mas são tudo conversas em círculo paroquial. Tudo sai ridículo, asneira, tiro nos pés.
Há dias, quando vi pela primeira vez uma coisa destas, fiquei curioso. Quem conhecedor diria que o queijo da Serra é o melhor queijo do mundo? Qual é o critério da sua escala de classificação, só para uma pequena lista: Serra (esquecendo os nossos outros de ovelha), S. Jorge, Pico, queijo velho de S. Miguel (uma preciosidade que já se vende cá por toda a parte); Mancheco; Camembert, Roquefort, Pirinéus, "chèvre" pirâmide, Boursin, Córsega; Chedar; Gorgonzola; Gruyère, vacherin; etc., etc., e só para referir, da Europa ocidental, aqueles que fazem visita frequente ao meu frigorífico?

Ainda por cima, faz comparação com o Gruyère, um queijo “demasiadamente grande, tipo roda” (o que tem a ver o tamanho com a qualidade? Indo ao seu melhor do mundo, é melhor do que o Azeitão apesar do dobro do tamanho?). Mais, o Gruyère é queijo "sem saber a nada"! 

Espantoso. Ou o homem nunca comeu um bom Gruyère rótulo preto ou está a aldrabar, pelo menos para gosto - discutível - de quem como eu, põe esse queijo nos píncaros. Por isto, um bom conhecedor de queijos certamente apreciará um Serra/Azeitão/Serpa (eu vou primeiro pelo Serpa, questão de gosto, depois pelo Azeitão e só no fim pelo Serra), mas muito provavelmente saberá que, no gosto geral de queijos, o que vale mais em Portugal é um S. Jorge de grande nível: não o que por aí se vende, com raras exceções, mas sim um Topo ou Rosais de 7 meses de cura.
Mas, afinal, quem é esse perito? Acabei por descobrir: Jorge Coroado, árbitro de futebol.
Hoje, novo caso de patetice gastronómica, entre a ignorância e a desfaçatez. Agora foi o inefável Marinho (e!) Pinto. “Os vinhos portugueses são os melhores do mundo”. E até teoriza: tudo porque só Portugal combina a influência mediterrânica com a atlântica. Não quero dizer, obviamente, que não temos excelentes vinhos. Mas os melhores do mundo? E, ainda por cima, os muito bons que temos são em tão pequena produção - e de qualidade muito variável de ano para ano de forma a dar garantia ao mercado - que nunca pesarão significativamente na nossa balança de pagamentos.
Assim não vamos lá. Se tudo isto fosse só uma brincadeira ou concurso televisivo, lá vá. Mas desconfio de que é sinal da ligeireza de como, entre nós, “assim se fazem as cousas”. E mais, em termos da atitude para com a comunicação social: não há português que resista ao microfone, é o maior vibrador titilante do ego; e não há português que pense que falar para a comunicação social é hoje influenciar, mal ou bem, muitos e muitos milhares de pessoas, com a responsabilidade intelectual e social que isto devia logo questionar.

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Malassada - entre a cozinha e a linguística

Um dos bons blogues gastronómicos que sigo, o Garficopo, traz crónica sobre fritos doces.  São sempre coisa funda nas memórias de criança, como comida de festa. Nos Açores, não são de Natal, mas sim de Carnaval. Deixo aqui um exemplo, provavelmente o mais típico e diferente em relação ao continente, as malassadas - que, mesmo nos Açores, são verdadeiramente típicas é de S. Miguel. São muito simples, rústicas, mas deliciosas. E, ao contrário de muita cozinha açoriana, não dependem de ingredientes ou condimentos locais. Já nem sei de quem é esta receita, recolhida nos meus tempos de gastrónomo a iniciar-se. Creio que de uma excelente cozinheira de casa da então minha namorada.
2 kg de farinha, 6 c. sopa de açúcar, 12 ovos, 125 g de manteiga, 125 g de banha, 2,5 dl de leite, 2,5 dl de água, 40 g de fermento de padeiro diluído, 1 cálice de aguardente. Bater tudo muito bem até a massa estar fina e deixar levedar, embrulhada num pano. Cortar ao tamanho de um bife e deixar o centro mais fino que os bordos. Fritar em óleo bem quente. Servir frias, polvilhadas com açúcar.
Comer e beber bem suscita sempre bom devaneio de conversa à mesa. Aqui vai uma sugestão a propósito. De onde vem o nome antiquíssimo e provavelmente já corrompido destes fritos? De “mal assadas” ou de “melaçadas”?
Há tempos, li numa crónica de Virgílio Nogueiro Gomes, e muito bem, que "a doçaria popular era confecionada com melaço, muito embora os árabes que estiveram na Península Ibérica já tivessem açúcar, apenas ficaram alguns que o poderiam vender em feiras."
Praticamente toda a doçaria açoriana é rica, conventual. Uma exceção notória, popular, são essas tais malassadas do Carnaval, que se fazem também na Madeira e que foram levadas pelos emigrantes açorianos para o nordeste americano e até para o Hawai.
Sempre vi escrito “malassada” e assim escreve M. Lurdes Modesto. Já o bom recoletor de receitas açorianas que foi Augusto Gomes escreve mal-assadas. Mas o “sempre” e o “costume” nem sempre têm razão.
Só conheço uma referência antiga a “malassada” assim escrita, de António Tenreiro, no seu “Itinerário” da viagem da Índia, e referindo-se a uma coisa ambígua, malassada de ovos, que me parece ir mais ao encontro da definição no dicionário de Cândido de Figueiredo, “malassada:  ovos, que se batem e se fritam ao mesmo tempo”. Não vejo o que possa ter o frito açoriano com estes ovos mexidos e com mal assado, até porque de facto é muito bem frito em óleo muito quente e fica muito tostado.
Palpita-me que é corruptela de melaçada, o que vai ao encontro do que Virgílio Gomes diz, genericamente. No entanto, é termo não registado por C. Azevedo nem por modernos dicionaristas. E também não é vulgar o "e" passar a "a", antes o contrário, como passo do nosso típico emudecimento das vogais átonas (lembram-se do costume baixo-beirão de Eanes ao nomear o “governe”?). O que acham disto tudo?

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

É bom poder dizer bem

Toda a gente fala nas estrelas Michelin, esquecendo que há outra classificação, a dos garfos. Diz respeito apenas à qualidade da cozinha, a restaurantes onde se come muito bem, mesmo que cozinha "caseira" ou quase de tasca. 

Escrevi caseira entre aspas porque não quero dizer que seja só cozinha tradicional. Apenas não é cozinha com pretensões de “à la page”, de criatividade, de deslumbramento da vista e de evocação sensorial do dia de praia em criança. Não quer dizer que essa cozinha caseira não possa ser de alta qualidade técnica, aprendida na escola das panelas e tachos e evidentemente devendo muito ao talento de todas as Babettes. São restaurantes que merecem um desvio da auto-estrada ou mesmo uma deslocação a propósito.
Um deles, onde sempre comi magnificamente e confirmei hoje, fica a 25 km de Lisboa, no Carregado. É a Kottada. Não sei porquê, o menu de hoje não era o que vem no “site”, mas trazia dois pratos emblemáticos, de que fiz vaquinha com o meu companheiro de refeição. A propósito, o risco para refeição de negócios ou outras conversas é perdermo-nos na gastronomia e no elogio do restaurante, bem como com as conversas de “sabedoria galega” do Sr. Fernando Garcia. Os tais pratos, dizia, são o bacalhau com alho e o patinho assado à Lezíria.
O bacalhau, posta alta, é de confeção transparente para quem sabe alguma coisa, mas é com isto que se aprecia o talento da cozinheira, Soledade Gutierrez. Cozinheira, prefiro chamar assim, sem ofensa, porque chefes há muitos. O bacalhau, do melhor, é primeiro escaldado como deve ser, não fervido e vai depois ao forno coberto com alho e azeite, pouco tempo, só a crocar. Vem com batatas pequenas, a murro e um estufado de curgetes em cubos médio-grados. Nada a criticar.
O patinho (certamente não mais do que 1-1,2 kg) assado ao ponto de quase se derreter na boca, com tempero justo para compensar o gosto típico e um todo nada enjoativo do bicho, pede meças ao de restaurantes estrelados. Pela minha modesta experiência, se há coisa difícil de cozinhar é pato. A meu ver, pede por contraste uma guarnição muito simples e seca, como eram as batatas fritas em lâminas que lá vinham (como deve ser com outra carne gorda, o leitão). Por isto, não me apeteceu o arroz de hortaliças.
Uma garrafa de Têmpera tinta roriz 2004, a preço mais do que razoável. Mas criticar - no sentido óbvio do elogio - os vinhos de José Bento dos Santos dá toda outra crónica. Tudo junto, “amuse-bouche”, pratos, vinho, cafés, cerca de 50 euros (para os dois!). Lá voltarei e recomendo vivamente. Três garfos!

quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

Truques e tricas - sopas (I - Legumes)

Quanto a sopas, a lista de dicas e recomendações seria longa de mais para uma entrada de blogue,  pensando em caldos, em “sopas brutas” de mistura - de que gosto muito - ou em sopas de legumes e de hortaliças. Começo hoje por estas últimas, com algumas notas soltas. Algumas coisas são elementares, mas há sempre quem deseje conhecê-las ou recordá-las e que me diz não considerar que seja pretensioso da minha parte arvorar-me em professor. Algumas coisas técnicas são de meu uso corrente mas, porque trabalhosas, aceito que só as façam para ocasiões a pedirem maior cuidado e qualidade.
É hoje cada vez mais vulgar a sopa de legumes, sortidos e variados. É certo que corresponde a uma velha tradição de ir para o pote tudo o que se via na horta, mas julgo que é de melhor gosto não fazer sopas com mistura a mais. Fica ao critério de cada um. Não me parece que dê grande coisa um namoro de alho francês e feijão, de cenoura e cogumelos ou de espargos e abóbora. Muito menos a coisa de meu confronto vulgar, a sopa disto e daquilo que é sempre sopa de cenoura com um pouco de alguma coisa a tentar justificar a diferença de nome.
Dieteticamente, cada vez se usa menos a batata para engrossar as sopas cremosas. Eu não a dispenso, moderadamente, mas só para o fim que direi adiante. Em vez da batata, para dar corpo, uso legumes carnudos, com poucos hidratos de carbono, como a curgete, a caiota (chuchu), a couve-flor, em certos casos as abóboras, mesmo o rábano ou o pepino, cujo “picante”, se bem usado, ajuda bem a uma sopa. Ou, muito especialmente, a beterraba, a dar cor a sopas que sem ela ficariam desagradavelmente brancas.
A maioria das hortaliças não deve ser adicionada à sopa em cru. Para retirar o sempre percetível amargo final, escaldar durante 1-2 minutos em água a ferver bem, sem sal, escorrer e acrescentar então à água final da sopa (ver a nota sobre água). Excetuam-se desta obrigação as hortaliças brancas, como o alho francês, a couve chinesa, as endívias, os espargos brancos. Repolho é coisa à parte, experimentem. Claro que também os cogumelos, se lhes quiserem chamar de legumes.
Muitas sopas ficam enriquecidas por um breve e ligeiro refogado/salteado prévio de ingredientes a acasalarem bem. Por exemplo, uma sopa de alho francês pode começar com um pouco - mas pouco - de bacon salteado, uma de ervilhas com presunto (coisa já estafada, reconheço), uma de espinafres com salteado de alho e talos de coentros picados, uma de abóbora com refogado de repolho e gengibre fresco ralado, etc. (tudo isto é meu gosto, claro, não posso impor). O louro fica à discrição. A seguir, antes de juntar a substância da sopa, três possibilidades: deixar só a gordura temperada pelo refogado, deixar também parte dele (nunca a folha de louro), deixar tudo.
Usava muito natas, hoje não posso. Depois de algumas experiências más, não vou mais pela moda do uso alternativo de coisas de soja. Ainda por cima, muitas coagulam facilmente e dão mau aspeto à sopa. Leite em dose suficiente, e magro, substitui muito bem a nata, no caso de sopas (bem, numa vhicyssoice não é a mesma coisa, mas enfim…). Em alguns casos, iogurte simples. Não esquecer que leite numa coisa a ferver exige mexidela frequente, a desfazer a película de caseína.
No fim, toda a gente usa o moinho de vara (a “varinha”). Mesmo que se aguente uma hora a cansar o braço, a gastar energia e a queimar o motor, fica sempre coisa papuda, com fibras. Há quem sirva assim e não exijo mais na minha cantina. Mas, mesmo quando estou sozinho e com desculpa de ser desleixado comigo, considero essencial o que vem a seguir. Passo o moído para um coador grande (de facto para um chinês de furos finos, mas vai bem o coador) e, com uma colher de pau (ou o cone sólido do chinês), comprimo bem o moído contra o coador. Quando já não sai mais líquido grosso, rejeito o resto fibroso. É normal ficar um pouco diluído de mais, mas é o que de mais elegante e suave devemos aproveitar da sopa. É aqui que faço entrar a batata, juntando amido de batata (ou, mais simplesmente, se não o têm, batata em flocos secos e finos para puré) e voltando a aquecer, mexendo. Maizena, fécula de trigo ou de arroz, são outras alternativas.
A alternativa é o engrossamento com arroz, pouco vulgar entre nós. À parte, cozer arroz carolino até papa, moê-lo, tratá-lo da mesma forma, reduzir o filtrado e adicionar quanto baste à sopa.
Também os temperos. Sal e pimenta, claro que obrigatórios. Gosto muito de pimenta preta mas, em sopas de legumes, só uso branca. Outros temperos, a gosto, mesmo que esquisito. Por exemplo, para além do meu uso maníaco de Jamaica, mas aqui com subtileza, abóbora pede-me sempre canela, feijão um toque de erva doce, algumas hortaliças uma erva específica ou um toque de gengibre. Quanto a isto, apenas um conselho: temperem só no fim, mesmo ao servir.  
Finalmente, a decoração. Um bom creme que nos põem à frente só como um líquido uniforme faz desgosto. “Croutons”, ervas, queijo fresco, ovo cozido picado (ou só a gema ou só a clara) ou um ovinho de codorniz escalfado, um picado de carnes a condizer, uma fruta ácida picada, umas sementes, coco ralado, chocolate amargo, café esmagado, umas gotas de azeite temperado e colorido, óleo de sésamo ou umas pequeníssimas gotas de óleo de palma, tanta coisa que podem escolher. 

Caso especial é o das massas. A meu ver, não devem cozer na sopa, são preparadas à parte e acrescentadas em pequena quantidade, só para decorar. Podem ser recheadas ou simples mas, neste caso, faço uma sugestão: joguem com a cor, deixando-as a incubar longamente a quente e depois cozer ao dente em qualquer concentrado (não salgado!) de sabor e cor contrastantes com a sopa (uma compota acidificada, um concentrado de tomate, um vinho generoso escuro, etc.). O mesmo para o sagu, massa pérola como se dizia na minha infância.

NOTA - Espero sinceramente que só 5% dos leitores tenham aproveitado alguma coisa desta entrada.

segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

Água na cozinha

Li isto no último suplemento Fugas do Público (para assinantes), como citação, num bom artigo de Alexandra Prado Coelho. 
“O desafio era provar água para cozinhar uma sopa”, recorda Gebhard Schachermayer, director executivo do Vila Joya e organizador do festival. “Tínhamos 42 tipos diferentes de água para experimentar. O chef cheirava as águas, provava algumas, e no final decidia se a água era boa ou não para fazer a sopa. Sempre achei que água fervida era água fervida e não conseguia ver nenhuma diferença entre elas. No final, o chef escolheu duas águas diferentes e preparou a sopa com ambas — o resultado foi a noite do dia.” 
O diretor executivo do Vila Joya não tem de ser um bom gastrónomo. Até mesmo a maioria das pessoas concordará com ele em que “água fervida é água fervida”, mesmo que seja, em certos sítios e como no meu prédio, insuportável de cloragem.
Há quanto tempo, pelo menos desde o meu livro “O Gosto de Bem Comer”, 2004, que digo que não consigo cozer marisco, fazer um bom consomê, mesmo um bom caldo, ou um molho de alta qualidade sem ser com água de nascente? Os leitores devem ter sempre lido isto como esquisitice, mas agora veem um diretor de restaurante bi-estrelado confirmar que pode ser a diferença entre a noite e o dia.
Aproveito para ir mais adiante. A água de nascente por vezes também é demasiadamente insípida. Além disto, peca muitas vezes por ter uma flora bacteriana reduzida, aquém das necessidades de simbiose do nosso intestino. E é relativamente cara, só para cozinha (ou, também indispensavelmente, para o meu “ice tea” caseiro, sem açúcar). Principalmente cara quando se acresce a despesa de deslocação para ir comprar a uma única loja de Lisboa a minha água preferida, a “Gloria Patri” (tinha de ser…).
Sugiro uma alternativa, que descobri recentemente: um recipiente com filtro de água da torneira. Vale a pena referir a marca, “Brita”. Comprei numa farmácia, por 30 e tal euros. As cargas posteriores também não são baratas, mas já fiz cálculos e sai mais em conta do que água engarrafada. A meu ver, o gosto é melhor, mais “cheio” mas sem o desagrado do cloro. Sanitariamente é correto, porque entretanto, no depósito, já o hipoclorito atuou.

NOTA - há textos na net afirmando que os filtros Brita são tóxicos. A informação que consegui recolher é que são fundamentalmente de carvão ativado, um poderoso absorvente que sempre usei no laboratório para remover tóxicos mas que, em si, é inofensivo como carvão - a não ser sujar as mãos. Isto não quer dizer que não haja problemas de toxicidade, mas no fim da utilização do filtro, cheio dos resíduos que filtrou. Claro que não o vou despejar para o lixo doméstico. Como reciclá-lo? Tenho de me informar.

domingo, 8 de janeiro de 2012

Coisas estranhas da cozinha familiar

Já aqui falei várias vezes de alguma estranheza que tenho sobre velhos hábitos culinários da infância familiar, coisas para mim então naturalíssimas mas que hoje me surpreendem. Essencialmente, um toque afrancesado, de familiaridade com a cozinha erudita clássica. Coisas que nem a sacerdotisa, a minha avó, me poderia explicar, porque ela tinha recebido a tradição mas não tinha informação para a enquadrar criticamente num panorama gastronomicamente mais vasto, muito menos visto à luz do seu futuro e hoje presente dos seus netos.
Por exemplo, não há qualquer registo na culinária açoriana, a não ser em uso ainda atual por primas distantes da minha avó, de um prato tão invulgar como é a galinha de molho de perdiz (“O Gosto de bem Comer”, pág. 281), prato que hoje tem de ser aligeirado, como ainda há dias fiz, mas que continua magnífico. A designação é usada em várias circunstâncias tradicionais açorianas, mas não tem nada a ver com este prato de família. Ainda nas aves, o costume que recordo desde criança de que galinha recheada natalícia, fria, se serve sempre com champanhe, bebida que não é só para a saúde de sobremesa. Hoje é banal, mas de onde vem tão invulgar uso nos anos 20 ou 30 de novecentos, ou até antes, nos Açores? Ou a língua ser sempre feita, requintadíssima, em três fases - cozida, estalada em fatias, guisada - em excelente fricassé? Ou peixe assado com suave mas contrastante molho de nozes e azeitonas, a que me habituei desde criança? É por tudo isto que, quando escrevi o livro, me foi obrigatório dedicá-lo à minha avó Adélia.
Ontem, para jantar simples, lembrei-me de outra coisa excelente. Lá fui buscá-la ao livro manuscrito da minha mãe com os “segredos” de família, livro velhinho a precisar de digitalização e de proteção do original. Era coisa que me perdia, as sardinhas à Nantes. O nome parece evocar logo a tal influência francesa na tradição culinária de família, mas não posso garantir. Certo é que fui procurar a todos os clássicos e não encontrei nenhuma referência. 
A receita vai no sítio do costume, adaptada a cavala ou sardas. Embora não goste de designações de receitas que os consumidores não entendam imediatamente, neste caso mantive o “à Nantes”. Cobri, em frio, com uma espécie de escabeche, de funcho, e acompanhei com simples rodelas de batata cozida e tiras de pimentão vermelho semi-assado no forno, a seco.
Mas o notável é outra coisa. Tal como M. Jourdain que não sabia que falava em prosa, a minha avó não sabia que estava a fazer (garanto que vem na sua receita familiar) uma coisa hoje tão modernaça, um confitado. Há 67 anos - os meus - fora os que já vinham sei lá de quando.

(Imagem: "La fête de Babette", um filme a não perder - se o encontrarem, senão peçam-me)

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Truques e tricas - alho, cebola e refogados

Continuo com truques e notas técnicas; tenho “feedback” de que são coisa que os meus leitores apreciam e creio que principalmente quando lhes são transmitidos por um amador com uma cozinha vulgar, mas experiente, não por chefes profissionais com muitos apetrechos e muita gente a ajudá-los. 
Hoje vou por coisa muito elementar, cebola e alho, a base dos refogados (no Norte, estrugidos) tão essenciais da nossa e de outras cozinhas tradicionais, embora menos usados, pelo menos de forma clássica, nas modernas cozinhas eruditas - e até eu, quando me esmero.
Começo pelo alho, porque também é por ele que começo um refogado, como direi adiante. O alho tem duas peles, a branca mais dura e a rosada mais fina. Isto implica-me dois procedimentos, ambos com o dente de alho já só com a pele rosada e a levarem um pequeno murro. Se for caso de um prato em que o alho se usa inteiro e se retira no fim, o murro é mais fraquinho, para manter a pele presa ao alho e assim vai para o tacho. Na generalidade dos casos, usa-se o alho sem qualquer película e é só, depois do tal murro, cortar o pé do dente e a pele sai facilmente. 
Alho pisado, laminado ou picado? Não há uma regra absoluta mas diria que pisado para um estufado ou similar em que, no fim, se moam os legumes; laminado em pratos ou molhos rápidos em que se quer realçar a vista do alho, como nas cozinhas mediterrânicas; picado, mais ou menos grosso, nos refogados. Em outros pratos ou para pasta de barrar carnes, pisar no almofariz com sal grosso e o que se quiser (azeite - pode ser só no fim, como na açorda -, ervas, azeitonas, massa de pimentão, malagueta, grãos de pimentas, etc.). E ainda o caso de muitas receitas minhas em que frito o alho (eventualmente também com bacon ou chouriço) a temperar a gordura, mas retiro-o depois antes de prosseguir com o prato.
Descontando a menos vulgar cebola branca, que raramente uso, alterno entre a cebola vulgar e a cebola roxa. Não vou dar regras; cada um que experimente a seu gosto. Tal como no alho, não é indiferente a técnica de cortar a cebola. Nos assados ou em pratos de ir lentamente ao lume, para a cebola não se desfazer completamente antes de dar todo o seu sabor, uso-a em rodelas ou até em gomos. Em pratos tradicionais de confeção “pesada” e apurados, cebola picada grosseiramente. Para um refogado, picada fino.
Coisa que me acontece com frequência, como cozinheiro solitário que não prevê bem as compras, grelam as cebolas cá em casa. Ótimo! O bolbo vai para o lixo e uso a rama, picada, como se fosse cebolo, mais difícil de encontrar. Dá um refogado a meu gosto muito melhor do que o tradicional. Outra substituição que faço frequentemente é a de usar chalotas, quase inexistentes há meia dúzia de anos, hoje banalíssimas e para mim indispensáveis para muitos usos derivados da minha vida na Suíça. Mas cuidado: a chalota não substitui apenas a cebola, mas sim, e com grande delicadeza, a mistura de cebola e alho.
Vem a propósito de refogados também o louro. É a única erva que junto logo ao refogado. Há quem o faça também no caso da salsa ou dos coentros mas acho uma barbaridade (com exceção dos talos, picados, que vão muito bem inicialmente num refogado). Sobre louro, só duas dicas técnicas: primeiro, segurando no pé, passe a folha pela chama, durante alguns segundos, de um lado e outro. Depois, retire a nervura central. Também junto nesta fase as pimentas em grão pisadas grosso (não quando as uso moídas, porque então são adicionadas ao líquido da confeção) porque o calor forte lhes queima a casca picante, deixando libertar-se o aroma do miolo. Esquisitices? Verá que fazem diferença e não dão muito trabalho. São estes os meus dois critérios para aconselhar técnicas.
Passemos ao refogado. Desde logo, a escolha do recipiente, obviamente não dependendo do refogado mas do que se vai fazer a seguir. Frigideira, tacho, panela? Cataplana?!... Dá para outra entrada sobre truques de cozinha. Fica prometida.
A seguir a gordura, que dá hoje pano para mangas de discussão, entre gastronomia e dietética. O meu saudoso amigo David Lopes Ramos dizia-me que, no meu livro, só não me perdoava eu falar de gorduras dietéticas. “Um açoriano que pensa sequer numa alternativa à manteiga!”, dizia-me ele.  Sei que ele estava a brincar, sabendo que agora há valores de saúde que se alevantam. Hoje o dogma é o azeite. Dieteticamente, é indiscutível, é o que uso no dia-a-dia, mas não é indiscutível gastronomicamente e creio que há compromissos razoáveis. O meu gosto ou influência de origens, em dia de fugir às regras, vai para outras coisas. 
A cozinha açoriana que me está nas raizes não é de azeite, coisa rica só para tempero. Fritos e base de guisados de peixe, polvo ou leguminosas, ou gordura em grande quantidade para estalar carne, são com óleo. Ovos estrelados, batatas fritas ou, principalmente, bifes feitos em azeite são para mim incomestíveis. No entanto, sendo o meu gosto, sujeito-me à minha regra de que “gostos discutem-se mesmo”.
Bifes são feitos com manteiga. Nem é açorianice, é a mais velha tradição portuguesa. É claro que hoje sabemos o que é a acroleina, há que controlar muito bem a temperatura da manteiga. "Beurre noir" é atentado à saúde e ler agora que Avillez vai inaugurar o seu novo Belcanto mantendo iconicamente os ovos à professor, do meu querido mestre João Cid, é certamente não respeitando o seu segredo de os ovos serem feitos com manteiga a queimar. Sem isto, diga-se de passagem, os ovos são uma banalidade. Quero ver como Avillez vai dar a volta (volta, porque se está a falar de uma omeleta...) [*].

Há também pratos tradicionais, açorianos e outros, principalmente de porco, que usam banha ou o pingo/unto derretidos do toucinho, seu equivalente. Já lá vai o tempo em que as minhas fritadas de morcela e linguiça de S. Miguel eram obrigatoriamente com banha. Hoje, para esses pratos ou para bifes ou salteados/braseados de carne, uso gorduras sintéticas para cozinha, sucedâneas da manteiga. Tendo experimentado muito e não ganhando comissão, permito-me aconselhar uma marca, Becel. Até há pouco tempo, era a margarina dietética para cozinha. Recentemente, muito bom produto, lançaram uma coisa quase pastosa, em frasco, Becel Cozinha rica em Omega 3. Recomendo. Escrevi “para cozinha” e é importante. Ao contrário do que escrevi extemporaneamente no meu livro (como as coisas mudam em meia dúzia de anos!), veio a saber-se depois que usar para cozinha a manteiga magra de barrar o pão é pior emenda do que o soneto.
Num refogado, a ordem dos fatores não é arbitrária. Primeiro, há ordem. Creio que muita gente junta à gordura quente, de uma só vez, a cebola e o alho. É mau, porque a cebola destila mais água, que dilui o sabor do alho. Eu aqueço moderadamente a gordura e junto o alho, controlando muito bem - é questão de segundos - até alourar só um pouco. A seguir é que junto a cebola, o louro e as pimentas pisadas (quando não as junto depois ao molho, moídas), incorporando tudo muito bem e aumentando um pouco o lume.
Num guisado, é comum entre nós começar por fazer o refogado e juntar depois a carne. Faça o contrário. Comece por alourar bem a carne (estalá-la) ou as aves, só em gordura, retire-as e use a mesma gordura para fazer o refogado, voltando a introduzir a carne na altura certa, conforme a receita. Se quiser que o molho fique mais engrossado, seque os pedaços de carne e envolva-os em farinha, antes de alourar. Mesmo depois de remover a carne, parte da farinha já passou para a base e vai engrossar o molho, antes do que vai ser o contributo da carne, quando voltar a juntá-la.

Em alguns casos na moda, esta inversão técnica é obrigatória. Experimente fazer um Stroganov como eu digo, em vez de juntar a carne ao refogado como fazem as “especialistas” da net, e logo verá. Idem para qualquer bom estufado ou “daube”, como o bem conhecido “boeuf bourguignon” ou o excelente mas desconhecido entre nós “émincé” suíço. 

[*] Os "ovos à professor" são uma simples omeleta com presunto, chouriço e pão frito. O que lhes dava diferença, "segredo" do Prof. João Cid, era a manteiga estar muito quente, praticamente queimada.