sábado, 29 de dezembro de 2012

Gorduras (II)

Este escrito é a quatro mãos, do JVC gastrónomo e do JVC médico (ou melhor, biomédico). Volto a falar de gorduras, tema sobre o qual muitos leitores me questionam. Escrevendo sobre gastronomia, claro que tenho de dar prioridade aos sabores e toda a gente sabe como é diferente um ovo estrelado em manteiga ou óleo suave e estrelado em azeite; ou batatas fritas em óleo ou em azeite; ou um bife frito em manteiga ou em azeite. Claro que para meu gosto e provavelmente memória de infância. E dou estes exemplos porque me parecem que revelam bem a dificuldade de compatibilizar gosto (de uma gordura para mim muito forte de sabor, como é o azeite) com os requisitos de saúde.

O que está em causa, quando discutimos gorduras, em termos de saúde? O seu papel em patologias importantes, e destacadamente a obesidade – hoje fator de muitas outras doenças – e a diabetes, em ambos os casos tendo de se ver a gordura no contexto do metabolismo geral, sem mais aprofundamento de análise. Quase que se pode ver apenas em termos de peso. A outra importantíssima situação é a das doenças cardiovasculares, incluindo os acidentes cerebrais, hoje partilhando com o cancro e os acidentes a maior taxa de causa de morte.

Neste caso, já não é só uma coisas simples de abuso de gorduras, em geral. É questão de “que gorduras?”, em termos do seu resultado final na taxa do maior perigo para as artérias, o colesterol. Mais refinadamente, se considerarmos no colesterol as gorduras de alta densidade (HDL) e as de baixa (LDL), estas as mais perigosas. Mais ainda coisas subtis, como os célebres ómega, que vou agora deixar de lado.

Todas as gorduras em excesso engordam igualmente, aumentam o peso. Significam 9 kilocalorias por grama (kcal/g), enquanto que as proteínas e os açúcares simples ou compostos se ficam por 4 kcal/g. Mas, para os efeitos específicos que discuti, há que distinguir em relação ao seu grau de saturação. As gorduras vulgares, descontando os casos especiais de fosfolípidos das membranas celulares ou a mielina das fibras nervosas, são constituídas essencialmente por ácidos gordos, longas cadeias de carbono ligados entre si e ligados a um ou dois hidrogénios ou em que uma destas ligações a hidrogénio pode ser compensada por uma ligação dupla entre dois carbonos sucessivos da cadeia.

Assim, falamos de gorduras insaturadas (mono ou poli), como as vegetais em que alguns carbonos têm duplas ligações entre si, ou de gorduras saturadas, quando estão principalmente ligados a dois átomos de hidrogénio. É o caso das gorduras animais, mais nocivas não tanto em relação ao engordar mas principalmente em relação à capacidade de formarem depósitos.

Em qualquer caso, há que lembrar que uma dieta excessivamente pobre em gorduras não é uma dieta equilibrada. Para um urbano, trabalhador intelectual ou de serviços, homem de meia idade e saudável, de cerca de 70 kg, com um grau razoável de exercício físico e com algum relaxamento psíquico, com bom índice corporal (IC = peso (kg) / (altura x altura) (m), sendo bom entre 19 e 25 kg/m2), a dieta diária deve corresponder a cerca de 2500 kcal. Destas, 20-30% devem ser provenientes de gorduras, o que significa cerca de 70 g de gordura, obviamente incluindo a que vai com a carne, o peixe, os laticínios (mas desprezivelmente com os legumes, hortaliças e frutas).

Façam as contas a esse componente de gordura própria dos alimentos, que vem na tabela de composição, na embalagem, e ficam com o excedente ou para barrar ou para cozinhar. Lembro que, em geral, uma colher de sopa de qualquer gordura equivale a 12 g de peso. 

Para barrar, temos a manteiga, a manteiga magra e a margarina de barrar. A manteiga é pura gordura animal, com 81% de gordura, 700-750 kcal% (kilocalorias por 100 g do alimento), com de 50,5% de saturação. A manteiga magra é um produto industrial que dilui a manteiga em água e, em compensação, para dar consistência, inclui amido, gelatina, emulsionante e outros aditivos, com um teor calórico de cerca de 380 kcal%, 25% de gordura, sendo esta 68% saturada. Veja-se que, por cada colher de sopa de manteiga saturada ingerimos quase 5 g de lípidos saturados e e em igual quantidade de manteiga magra 2 g. No entanto, como, com isto, fica com menor sabor a manteiga, um risco conhecido é o de se usar o dobro da dose por cada fatia de pão e lá vai o benefício.

Menos vantajosa ainda, porque a vantagem dietética (320 kcal%,) não é grande em relação ao prejuízo gastronómico, é a margarina dietética de barrar (só conheço a Becel, comercializada também como produto branco Pingo Doce). A sua composição não difere muito da manteiga magra, mas tem bastante mais gorduras vegetais do que manteiga, bemefício que, para mim, não compensa o mau sabor.

Para cozinhar, sempre se usaram três tipos de gordura: animal, azeite, outros óleos. Continuemos nas gorduras sólidas, manteiga, banha, margarina. Da manteiga, já falei. A banha não difere muito, em valor calórico e em alta percentagem de gorduras saturadas. Fica a margarina vulgar, um produto que aparentemente teria a vantagem de ser preparado com gorduras vegetais, mas afinal saturadas artificialmente para solidificar a margarina. Não me parece merecer ser tida em conta, a não ser pelo preço. Não está demonstrado que faça menos mal do que a manteiga ou a banha, nunca a uso. São 600 kcal%, 60% de gorduras saturadas.

Caso diferente é o das margarinas dietéticas de cozinha. Note-se bem que são só próprias para cozinha, nunca as usem a cru. Sabem mal a barrar torrada mas, em contrapartida, os novos produtos para barrar, de que falei acima, não podem ser usados a temperatura de cozinha. Experimentem e logo verão o que resulta de aquecer manteiga magra para fritar qualquer coisa.

Vou dar só valores médios, porque há várias marcas. O seu valor calórico, 600 kcal%, fica entre o das gorduras tradicionais e o dos novos produtos mas que, como disse, não servem para cozinha. Contêm 3:1 de mono e poli-insaturados para saturados, em comparação com as gorduras animais, estas com relação quase inversa, de 1:2. Recentemente, apareceu um óleo cremoso para fritura, da Becel. Vale-me principalmente pelo seu gosto, mais “manteiguento”, e com bom valor dietético: 630 kcal% – admito que um pouco a mais, mas mais vale um gosto que três vinténs – compensados por uma alta relação de insaturados:saturados, 9:1, e uma boa relação entre ómegas 3 e 6. 

Fica a questão, quase “patriótica” do azeite e dos óleos. Caloricamente e em composição relativa de ácidos gordos, saturados ou insaturados, são praticamente equivalentes. A vantagem do azeite, quanto à saúde, só tem como base estudos muito gerais de comparação da dieta mediterrânica com a outra cozinha europeia norte-central, como se nessa comparação não houvesse muitos fatores a considerar para além do azeite. Por exemplo, quando se divide a “outra cozinha” entre a europeia central, de carnes (França, Suíça, Alemanha, Holanda, Áustria) e a cozinha escandinava, mais ainda a lapónica e esquimó, as coisas mudam muito, num caso para vantagem do azeite, no outro caso com bastante menor diferença. 

Portanto, aqui é que a questão é mesmo gastronómica. É só questão de gosto, e nem sequer absolutizante. Pela minha parte, gosto muito de usar azeite para certos cozinhados, não gosto para outros. Discordem de mim, com todo o direito, mas não invocando pseudo-argumentos dietéticos, afinal bom trabalho do enorme lóbi do azeite mediterrânico.

segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

O Natal merece cozinha elaborada

Cá vai mais uma das minhas francesices. Daqueles que me fazem valer a alguns bloguistas a acusação de eu ser um pretensioso, todo esquisito na cozinha, que deve ser é forte e bruta, rústica e caseira, mesmo que um pouco aligeirada, porque ser moderno e bom cozinheiro é só isto, ficando o resto para os profissionais. 

Mesmo assim, aceito que alguns deles, variando coisas tradicionais que fizeram a sua cozinha de infância, como me aconteceu a mim, fazem bom trabalho. Fazem incomparavelmente melhor do que as tias que rasgam para levar para o blogue as folhas da revista do cabeleireiro. Mas criar com arte é outra coisa, perdoe-se-me a imodéstia. Admito que seja “twilight zone” culinária, porque fica entre amador tosco embora bem intencionado e especialista profissional. 

A minha consoada é tradicional, do lado transmontano da morena. Polvo frito, sopa de bacalhau com ovos em fio, bacalhau com todos. Como era para ser cá em casa, preparei uma ementa que acho interessante. A cada prato tradicional seguir-se-ia um miniprato de cozinha moderna, minha, baseada nele. Afinal, não vai ser assim, mas provavelmente publicarei o que seriam esses pratos de cozinha elaborada.

Fica o jantar de Natal, que, na minha tradição açoriana, é o momento máximo das festas. Era só a canja e a galinha recheada, que depois virou peru, que depois virou capão e que hoje, com a retração da família dispersa, virou novamente galinha. O bacalhau não tinha tradição de meninos Costa, até eu consagrar muitos anos depois, como ícone natalício, o bacalhau à Conde da Guarda, genuíno.

Da galinha recheada não vou dizer nada, creio que já escrevi sobre ela vezes e vezes, desde o meu livro “O Gosto de Bem Comer”. Hoje fica só nota para inovação de Natal, “Consomê de lambujinhas aromatizado com champanhe e sabor a bicho de pena”. Dir-me-ão que é maluquice, que “perdi” horas e horas, mas acho que valeu a pena. Cozinha de meia-bola-e-força, mesmo que “inovadora” em relação à tradicional, é muito boa, mas, para outros esforços maiores e para quem é capaz, há dias únicos no ano. Aqui fica a receita, no sítio habitual.

P. S. (26.12.2012) - provável sinal de cansaço de azáfamas festivas, a receita saiu toda mal na minha página de receitas. Só agora vi e corrigi. As minhas desculpas.

domingo, 16 de dezembro de 2012

A tradição de uma oferta de Natal

Há já bastantes anos, a vida cruzou-me profissionalmente com um homem notável, muito mais novo do que eu, Nuno Jardim Nunes, então vice-reitor da Universidade da Madeira. Tinha lido um artigo meu sobre educação liberal e desafiou-me a fazermos aquilo na Madeira; o que depois, com grande sucesso, Sampaio da Nóvoa fez como “Estudos Gerais” na Universidade de Lisboa. O nosso processo, apesar de grandes apoios internos, falhou por uma zanga mesquinha de um pobre reitor.

Mas isto é coisa para conversa de Moleskine. O que vem ao lado desta história é que criamos amizade e ficou tradição eu fornecer sempre ao Nuno uma receita nova para a sua ceia de Natal. Creio que ele não se importa de a compartilhar este ano com os meus leitores. Não vou ser pretensioso a dizer que é um exemplo de desconstrução. É apenas uma variante moderna e creio que imaginativa de um dos mais tradicionais pratos da cozinha portuguesa.

Bacalhau com todos em cozinha moderna, com toques madeirenses
Para 4 pessoas. 4 postas de bacalhau alto, de preferência de cura amarela, azeite quanto baste para cobrir, leite. 600 g de grão, 1 cebola, 3 c. sopa de iogurte, sal, pimenta preta. 4 dentes de alho, segurelha a gosto, 60-80 g de chouriço. 2 batatas doces. 1 molho de grelos (ou couve portuguesa). 2 bolos do caco, azeite, azeitonas, sumo de limão, malagueta, 2 ovos, salsa.
Numa assadeira, colocar as postas de bacalhau, com pele para baixo, completamente cobertas com azeite de 0,4-0,5º, cobrir com folha de alumínio e levar a forno pré-aquecido a 80º, durante 60-75 minutos, conforme a espessura das postas. O bacalhau deve ter aspecto de bem cozinhado mas sem estar lascado nem ter perdido a sua untuosidade característica. Lascar muito grosso o bacalhau, reservar o azeite e usar as peles e espinhas, fervidas, para uma canja ou açorda de bacalhau. Ter o leite a ferver, apagar o lume e deixar amornar até cerca de 45-50º. Introduzir as lascas de bacalhau e tapar, incubando durante cerca de 20 minutos. Escorrer e secar bem as lascas de bacalhau, em papel absorvente.

Demolhar o grão e cozer com a cebola, sal e pimenta. Moer em copo homogenizador, com o iogurte. Passar pelo chinês, para remover as peles e, se necessário, voltar a levar ao lume, a engrossar, com farinha de milho.

Fervilhar durante 30 minutos, a lume baixo, 5 dl do azeite do assado com o louro, o alho esmagado, segurelha e o chouriço em rodelas finas. Coar.

Semicozer, inteiras e com casca, as batatas doces. Cortar em rodelas grossas e acabar de cozer, assando no forno, temperando com sal e pimenta preta.

Escaldar os grelos ou as couves, sem talos grossos, em água a ferver, durante 1 minuto. Escorrer, lavar com bastante água fria e voltar a cozer, durante 15 minutos, só com sal. Escorrer, cortar grosseiramente, esmagar e comprimir bem entre as mãos e formar cilindros grandes.

Cortar a meio os bolos do caco, pequenos, e barrar a face interior com pasta a gosto de azeitona com um fio de azeite, sumo de limão e massa de malagueta, comedidamente. Tostar brevemente no forno e cobrir com ovo cozido, às rodelas, temperado com sal e limão e polvilhado com salsa picada.

Servir em composição de travessa ou em pratos individuais: uma cama de puré de grão coberta com lascas grandes de bacalhau; um cilindro de couves; uma tosta barrada e coberta com rodelas de ovo cozido; rodelas de batata doce. Tudo regado com um fio do azeite aromatizado com alho e chouriço.

NOTA 1 – Até um açoriano deve admitir que, lá de vez em quando, a Madeira dá muito boa gente ;-) No meu círculo de grandes amigos, conto com dois, mais uma boa candidata, colega, a sê-lo cada vez mais. Vivam, Nuno, Jorge, Raul, Teresa!

NOTA 2 – A foto, do casino do Funchal (falta o hotel ao lado) é uma homenagem ao genial Niemeyer, morto há dias, diga-se que em muito boa idade de morrer... Que eu saiba, este é o seu único trabalho em Portugal.

sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

Truques técnicos

A alta técnica pode parecer coisa só para profissionais. Pode exigir instrumentos que um amador não tem, como um forno a vapor (mas pode ter, facilmente, um sifão, um maçarico, um aparelho simples de fechar sacos a vácuo, um banho com termostato para baixas temperaturas, um fumigador). Mesmo o forno a vapor pode bem ser substituído pelo forno vulgar com o tabuleiro cheio de água e pré-aquecido a 150º durante o tempo suficiente para a porta do forno estar bem embaciada. Resta saber é se o resultado compensa o gasto de energia.

Hoje vou dar dicas sobre duas coisas comprovadas com bastante minha experiência, a primeira bem simples, a segunda talvez mais elaborada: ovos escalfados no micro-ondas e esferas sem ser à Adriá.

Um ovo escalfado, ou só a gema, sobre uma boa combinação de ingredientes, num ramequim de ir ao forno a vapor, fica ótimo, macio. Também pode ser feito no micro-ondas, por si só ou a cobrir qualquer mistura já cozinhada ou a cozinhar simultaneamente, se as condições de cozedura do ovo também forem adequadas a essa mistura. A técnica é muito crítica e vale para ovos acabados de retirar do frigorífico e para potência de forno de 900 W, com prato rotativo e tampa. A gema fica semi-cozida e ainda mole, mas já consistente, ao fim de 8-10 segundos. A clara ao fim de 50-60 segundos. Para ovo completo, começar por cozer a clara durante 45 segundos, colocar sobre ela a gema e cozer mais 10 segundos. Voilà!

Adriá criou a esferificação, com base no alginato incorporado em qualquer que líquido que se imagine e depois colocando gotas da mistura, com o tamanho desejado, numa solução de cloreto de cálcio. São produtos que se tem de comprar a fornecedores especializados. Sugiro duas alternativas.

A primeira é a utilização de um produto à venda em bons supermercados (ou no armário de qualquer laboratório de análises), o agar (também dito agar-agar). É uma adaptação da técnica de Adriá popularizada por Xavier Pauly. Mistura-se agar em pó ao líquido que se que se quer esferificar, a 2%. Isto é, 2 g de agar por cada dl do líquido. Ferve-se e homogeniza-se bem. Ainda relativamente quente, sem ter ainda gelificado, passa-se para uma seringa ou pipeta e deixa-se gotejar, no tamanho que se deseja, para um recipiente com óleo muito frio (no frigorífico ou mesmo algum tempo no congelador). Vê-se bem formarem-se as pérolas, que se retiram com uma colher de rede ou uma escumadeira. Voilà! A grande, muito grande limitação é que o interior das esferas fica em gel (semi-sólido) e elas não “rebentam na boca”, à Adriá.

O agar pode ser também um bom substituto para a gelatina. Tem a vantagem de gelificar a cerca de 40-45º, sem precisar de ir ao frigorífico, como muitas vezes temos de fazer com as gelatinas à base de colagénio. A concentração de agar varia, mas, para uma geleia consistente quanto baste mas leve, ronda 1%, podendo ir-se a 1,5% para ficar mais sólida. Lembre-se que x% quer dizer x gramas de agar por cada porção de 1 dl ou 100 ml (ou 100 cm3) de líquido.

Uma outra forma de esferificação que uso, mais limitada mas mesmo assim versátil, baseia-se um produto natural, coisa corrente em velhas casas de infância: a massa pérola. Canja e caldo de carne, era eu miúdo e a aprender estas coisas, eram muitas vezes clarificados, em bom consomê e acrescentados de massa pérola. Outras vezes, a massa ia com creme de galinha. Não dava muito sabor, mas o efeito visual era magnífico. Foi coisa que praticamente desapareceu, a massa pérola, nem nos Açores já há, mas compra-se aqui em algumas lojas dietéticas como sagu (não confundir com um prato de vegetais indianos e coco ralado, com o mesmo nome) ou tapioca.

Não são exatamente a mesma coisa, mas na prática são quase equivalentes. Em ambos os casos, são pequenas esferas, brancas e opacas, de uma massa dura. São ambos produtos secos e comprimidos de amido, o sagu proveniente de uma palmeira do sueste asiático, a “sago palm”, no segundo caso a tapioca a partir da mandioca.

O efeito é principalmente decorativo, visual, pelo que a massa deve ser preparada num líquido qualquer bem corado. Até pode ser água (ou caldo) com um corante alimentar. A técnica é simples. Aquecer o líquido e cobrir bem as pérolas, a incubar e amolecer durante cerca de 2-3 horas ou mais, não há limite, é como se fosse demolhar feijão. Levar a fervura, a lume brando, cerca de 1 hora, até a massa estar inchada, translúcida e colorida. Atenção, coisa importante: fazer sempre à última hora, não deixar arrefecer, senão colam-se e não se consegue separar. Voilà! 

Ainda há dias, foi um creme de galinha com pérolas em suco de beterraba. Também podia ter sido vinho do Porto, tinta de polvo ou choco (claro que não estou a pensar no tal creme de galinha), sumo de morango, moído de verduras, etc.

terça-feira, 4 de dezembro de 2012

"Fast food"

Melhor dito, cozinha de centro comercial. Em alguns, há restaurantes que não são nada de “fast food”. Por exemplo, os muito bons “Meson Andaluz” – espero que ainda existam – primeiro num exíguo centro na Parede, depois no Cascais Shopping. Também, neste, o “Beer Garden”. Aceitáveis, as  cervejarias Portugália. Outros decairam, como os Alentejo. Outros, de amesendação, como o restaurante italiano ou o de bifes à americana (no meu vizinho Alegro de Alfragide; faltam-me agora os nomes, de cor) têm constrições de filas de espera por uma mesa.

Também um ou outro pequeno local de bom gosto de bem cozinhar, sopas, salgados, doces, de que infelizmente não recordo o nome, em sítios a que vou de vez em quando, o Atrium Saldanha (local de trabalho da morena, que de lá me traz boas coisas para o jantar apressado de dia de semana), o Fonte Nova de Benfica. Não esquecendo o "take away" muito satisfatório do Colóquio, restaurante aqui ao pé, em Alfragide.

Nesta breve entrada, quero deixar algumas notas da minha experiência semanal de comer em centro comercial em noite de cinema. Claro que deixo de fora McDonalds, Pizza Hut e KFC. Também já me cansa a monotonia dos brasileiros ao quilo, com base na picanha.

Os “regionais”, da Serra e quejandos, são lamentáveis de falta de imaginação gastronómica, sem atrair o freguês. Um de bacalhau, primor de má confeção, faliu. Ficam os exóticos, mas que cansam se todas as semanas, a não ser, pela sua variedade, o Yo do Colombo. Com boa saída, os de sopas, saladas e outras coisas para diminuir a cintura das guapas. 

Nota também para dois favoritos meus, espanhóis: o balcão/mesa de tapas do Corte Inglês, agora renovado com nova ementa de “tapas do chefe”, e o escondido e talvez pouco conhecido “Tapas & Cañas”, nas Amoreiras, com a sua boa oferta de “huevos rotos”. Com um simpático empregado hispano-irlandês, que me faz lembrar um bom amigo americano da minha idade, filho de comunista português de infantaria e de irlandesa enfermeira, conhecidos e relacionados de guerra-e-cama nas Brigadas Internacionais. 

A elogiar francamente, duas coisas genuinamente portuguesas, a que, também por isto, desejo sucesso. Ao que sei, até fazem “joint venture”. Primeiro o H3, coisa simples: o mesmo hambúrguer de base, com boa carne mas mistura banal, porque necessária, como base, para o que se diz já a seguir. Grande variedade de guarnições e molhos, imaginativos e bem confecionados; dois ou três acompanhamentos à escolha. Francamente recomendável.

Ainda mais recomendável, a Empadaria do Chefe, de José Avillez, ao que me apercebo apenas no Colombo, na zona de Lisboa. Com batata palha ou salada, sai uma empada de boa dimensão para quem janta com alguma frugalidade. Não sei se vou esquecer alguma: de galinha, de frango thai, de cozido à portuguesa, de camarão, de vitela com espinafres, de alheira com grelos ou de bacalhau. nota um pouco crítica só para a de cozido, seca, áspera e demasiado rústica. Um toquezinho de imaginação, Avillez? Basta um aveludado à maneira.

P. S. (4.12.2012) – Os restaurantes do Alegro que referi, sem me lembrar do nome, são, respetivamente, o Eataly e o Hollywood.

sábado, 1 de dezembro de 2012

Recordando a minha vida na Suíça

Já há tempos que vinha a ver à venda, no meu hiper, “fromage à racler”. Sempre houve, em sítios muito excecionais, desde que vim da Suiça e não o dispensava, mas agora amigos começam a perguntar-me para que serve, porque, como queijo, não o apreciam muito. Têm razão, não se compara a um Gruyère ou outros grandes queijos suíços (em que não incluo o Ementhal!). É um queijo com utilização muito específica, a raclette dos cantões suíços francófonos do Vaud (onde vivi, em Lutry, à ilharga de Lausana) e do Valais, o cantão que dá aqueles louros grandalhões e católicos beatos da guarda suíça do Vaticano.

Mas, antes, alguma divagação pelas minhas memórias de suíço adotivo, no princípio dos 70s. Tenho com a Suíça uma relação afetiva complicada de “amor e ódio”. Aprecio profundamente o grande sentimento de liberdade dos suíços, própria e dos outros, o seu civismo, a sua democracia direta (embora com altas taxas de abstenção) e a força de intervenção e de participação cidadã nas pequenas comunas, um exemplo para as nossas autarquias. Mas, neste plano dos valores políticos e de cidadania, acho execrável a xenofobia que já sentia há trinta anos e que agora se acentua, bem como o seu isolacionismo e egoísmo nas relações internacionais. 

No dia a dia, apreciava a cortesia das pessoas mas irritava-me quando, num autocarro, as velhotas faziam caras francamente reprovadoras se os meus filhos crianças falavam um pouco mais alto. E, acima de tudo, a mania da ordem e da limpeza, tão bem parodiada no Astérix, que eu valorizava, mas que também me irritava um pouco. Costumava dizer que as vacas suíças, antes de irem para o pasto, tomavam duche todos os dias. É o único país onde eu vi, até na minha pequena comuna de Lutry, brigadas de funcionários que, semanalmente, lavavam os sinais de trânsito! Mas isto está a passar à história, porque hoje me impressiona a quantidade de plásticos e latas de Coca-Cola que se vêem pelo chão, no centro de Genebra.

A cozinha suíça, que conheci bem, é peculiar. Talvez os leitores não saibam que a Suíça, ainda na primeira metade do século XX, era um pais pobre, de forte emigração. Pobre também era, por isso, a cozinha popular. Cozinha de batata! Hoje, na Suíça rica, há uma excelente cozinha, mas principalmente burguesa e de forte influência francesa, pelo menos na zona francófona, onde vivi. Passemos então à raclette.

A raclette é todo um cerimonial de festa. O queijo é cortada à metade e posto junto à lareira, a amolecer. Cada conviva sabe bem quando está no ponto de, com uma espátula, rapar (“racler”) uma fatia mole e passá-la para o seu prato. Quem tem lareira pode fazê-lo assim. Eu dispenso-a, usando, para lhe apresentar defronte o queijo, um velho aquecedor elétrico, de resistência ou de lâmpada de infravermelhos. Esta é a parte menos importante da história, o que interessa é com que se vai comer o queijo.

Talvez mais importante, com que se vai beber. Com um Dorin, de preferência Dezaley, uma variante “vaudoise” de chasselas, que dá vinhos brancos muito aromáticos, se sabor intenso, prolongado fim de boca, extremamente secos, tipicamente chamados de vinhos com gosto de pederneira. Produção limitada, nunca os encontrei cá, são coisa obrigatória na bagagem de regresso de Genebra. Mas pelo menos a 30 € por garrafa! Mantendo-me nos brancos, e também chasselas mas menos agreste do que o Dorin, pode-se optar por um Fendant do Valais.

Quem vai à lareira recolher a sua pazada de raclette já leva o prato como quer, a cobrir com o queijo. Não vou dar receitas, porque cada um se esmera no que inventa, mas há coisas básicas. Desde logo, lascas de batata cozida, por vezes temperada com paprica. Não se esqueça, como disse, que a batata era a base da alimentação suíça, quando o país era pobre e exportador de gente, no séc. XIX. Também picles, pepinos de conserva, anchovas, “boeuf valaisan” (um presunto de carne de vaca), legumes, variados enchidos, o que calhar.

É um ritual que dá pela noite dentro, em festas com exuberância suíça. O meu senhorio, M. Fuchs, vivia no apartamento por cima do meu. Um dia, veio pedir-me desculpa pelo incómodo de uma festa de raclette. Eu tinha dormido como um justo, nem dei pela festa.

Outra festa ritual é a da fondue, também tipicamente “vaudoise”. Muita gente tem cá o apetrecho, “caquelon”, lamparina, garfos, mas para fazerem a chamada fondue borguinhona, de carnes. Ainda não consegui apurar a sua história, que, com a fondue chinesa e a de chocolate, começa nos anos 50 do século passado, com origens obscuras, a aproveitar o utensílio tradicional suíço. Como se sabe, são pedaços de carne fritos em óleo e molhados em molhos diversos. O que é que isto tem a ver com "fundida" ("fondue")? Até podia ser interessante, como faço às vezes, desde que a carne seja de lombo, o óleo fresco e os molhos feitos à maneira, ao gosto do chefe, e não retirados a esmo da prateleira do supermercado.

Não é disto que vou falar, mas da fondue suíça. Ela não é verdadeiramente um prato. É parte essencial de um ritual de convivência. Vai-se comendo lentamente, ao longo de horas, entre muita conversa e copos de vinho.

Quem for pela informação histórica hoje abundante na net, lerá que as primeiras referências a um prato rústico e simples, só de queijo fundido, datam de séc. XVII. A sua inclusão no catálogo da cozinha erudita deve-se a Brillat-Savarin, em 1834, com a designação inédita de "fondue". Nada do que é hoje: metia trufas e ovos mexidos. Só no fim desse século é que se "codificou" a fondue como ainda hoje é feita, considerada o prato nacional suíço (apesar de mais tipicamente da Suíça francófona).

Há variantes de fondue, tida cada uma como emblemática de cada cantão francófono, mas a genuína é a do Vaud, só com queijo Gruyère (o tal queijo que, há tempos, uma tia famosa da net disse que era o queijo francês mais conhecido, cheio de buracos). Aquela que, a seguir, por mais equilibrada de sabores, sempre me atraiu, é a "dos três cantões", uma criação erudita, misturando, terço a terço, Gruyére, vacherin de Friburgo e Ementhal. Já não se pode fazer, porque deixou de se fabricar o já então raro e magnífico vacherin, um dos melhores queijos que já comi. E também há a minha fondue açoriana, só de S. Jorge ou então de mistura de S. Jorge, queijo velho de S. Miguel e queijo do Pico mal curado ou um dos novos açorianos de pasta semimole.

A técnica não é difícil. Quanto aos queijos, passá-los na mandolina, a ralado grado. Esfregar o recipiente (“caquelon”, de metal mas preferivelmente de cerâmica), com bastante alho. Juntar 600 g de queijo, 6 dl de vinho branco seco (em Portugal, sugiro um Arinto) e 1 cálice de aguardente (na Suíça, as suas aguardentes de frutos) com 1 c. sobremesa de maizena. Temperar com pouco ou nenhum sal – o queijo é salgado – pimenta preta e bastante noz moscada. Aquecer a lume médio até fundir e fervilhar. Passar para a mesa, sobre a lamparina.

Aqui é que está o segredo do artista. Chama muito alta seca logo a fondue, chama muito baixa mantém-na muito líquida, quando o que se pretende é uma pasta a envolver bem os cubos de pão, espetados no garfo, sem escorrer. Bonito é uma pequena estalactite de queijo a pingar do pão, mas sem se soltar. No fim, deve haver no fundo uma fina película de queijo queimado (a "freira"). Experimentem e ganhem prática. E não esqueçam a regra absoluta: quem perder o pedaço de pão paga a próxima fondue! Ou, se for uma senhora, dá uma volta à mesa a beijar todos os homens.

Ainda fica por descrever coisa magnífica, cá desconhecida,  a “crôute”, que merece ida a Gruyère – uma linda aldeia medieval, minúscula, toda dentro de um castelo. Quem lá comeu muitas, como eu, pode fazer variantes (por exemplo, uns cubinhos de pepinos de conserva ou de presunto, cogumelos ou um toque de paprica), mas aqui fica a genuina, muito simples. Misturar cebola (ou chalota) picada e salteada em manteiga, vinho Dorin, ovo batido e muito queijo Gruyère ralado grosso. Temperar com sal, pimenta preta, noz moscada, cobrir com esta pasta fatias de pão rústico e levar ao forno a gratinar. É tudo! Outras coisas já são variantes, de outros cantões ou de coisas de família, não digo que não muitas boas. Eu próprio as faço, como disse acima.