sexta-feira, 16 de agosto de 2013

Olha-se e experimenta-se

Já muitas vezes, e até no prefácio do meu livro Gosto de bem Comer, deixei homenagem à minha principal raiz gastronómica, a minha avó Adélia, de solteira Adélia Guiomar Fagundes, família de pequena aristocracia rural, “sociedade bem” praiense em que o património culinário era muito considerado. Simplesmente, a minha avó ia muito mais longe, porque foi uma grande criadora, principalmente em pastelaria, com fama por toda a ilha.

Mesmo em coisas icónicas, como a alcatra terceirense – cuja receita de família, hoje minha e dos meus irmãos, julgo não ter rival, e os três a fazê-la muito bem, em variante rica de carne e vinho de 1ª, com muita técnica exigente – aventurava-se por sugestões das amigas, de que tinha de “dar fé” [*], nem que fossem, que me lembro, uma alcatra com linguiça e outra com canela, com a minha mãe a repreender, “lá se foi tão boa carne”.

O melhor exemplo, lembro-me tão bem, foi quando o meu pai, um dia, comprou uma novidade, línguas de bacalhau, que não se vendiam nos Açores. Como fazer aquilo? Para a minha avó, nada mais fácil. Língua é língua. Na nossa família, língua de vaca é de fricassé, e assim ficou a receita familiar de línguas de bacalhau em fricassé. Curioso é que, muitos anos depois, vim a descobrir que é uma forma, embora não muito vulgar, de as cozinhar na cozinha burguesa continental.

A que vem isto? Aqui na cidade ao lado, Amadora, hoje mais encantadoramente de pretos que de brancos, mesmo do outro lado da estação, há uma boa mercearia só de produtos exóticos, africanos, brasileiros (anote-se: o único sítio em que encontro hoje carne seca para a feijoada) e agora até ucranianos. Há dias, havia uma coisa que não conhecia, o jiló. Parece quiabo, mas é redondo e mais curto.

Como fazer aquilo? Hoje tenho a net, que a minha avó não tinha, mas nenhuma receita me convenceu, embora a leitura tenha sido útil para ficar a saber de algumas características da coisa (por exemplo, como o quiabo, precisa de demolha). Aqui fica então o estufado de jiló com farofa.
2 pessoas. 500 g de jiló, 3 dentes de alho, 2-3 c. sopa de azeite ou óleo, 80 g de charque (ou bacon), 1 dl de leite de coco, coentros, sal, pimenta, piripiri. 1 cebola, 150 g de farinha de mandioca grossa, 4 c. sopa de óleo de palma, 2 c. sopa de leite, 2 ovos, sal, pimenta. 
Cortar os jilós em quartos e deixar libertar o “ranho” em várias mudas de água quente. Se se usar charque (carne seca), demolhar. Alourar o alho laminado no azeite ou óleo e saltear o jiló, cortado aos quartos. Molhar com o leite de coco, temperar e estufar. Refogar em óleo de palma a cebola picada e saltear com a mandioca entretanto amolecida com leite. Misturar com os ovos batidos, incorporando a lume baixo e temperar.
[*] O “dar fé”, expressão açoriana para se conhecer alguma coisa pela primeira vez, era coisa muito característica da minha avó. Muitas expedições de dar fé combinava ela coma Ascensão, memória querida da minha casa de criança. E quantas vezes a minha avó, já toda branca, se queixava de que o genro tão amigo ainda não a tinha levado a “dar fé” do que era um jogo de futebol? Para o meu D, sempre reservado e meu grilo criticamente falante, eu estou a violar a nossa privacidade de família, mas eu sei que isto também lhe puxa pela lágrima.

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