segunda-feira, 30 de setembro de 2013

Ronda de restaurantes – DOP

Almoçados no À Parte, foi logo caminho para o Porto, terra de godos bárbaros. Ficámos num hotel bem simpático e não exorbitante, o Pestana Porto, na Praça da Ribeira. O tempo foi curto para uma breve volta pela Ribeira, antes do jantar no DOP, bem perto, a pé, no Largo de S. Domingos. Por DOP, segundo a ideia do chefe Rui Paula (também com o DOC na Régua) entenda-se “degustar, ousar, Porto”.

Nunca lá tinha ido e só não fico cliente obrigatório nas idas à invicta, etc., porque o preço, naturalmente, não é para a banalidade do dia-a-dia. Sobre o restaurante, o seu chefe, a sua concepção de restaurante, vejam o “sítio”.

Como é nosso hábito, quando queremos conhecer, pela primeira vez, as características de um restaurante, optamos por um menu de degustação. Há quem, em partilha de casal, escolha dois. Não o fazemos, para podermos comentar bem o que estamos ambos a comer. Há dois menus, o Douro (70€) e o Mar (80€). Fomos pelo Douro, mais variado, incluindo carnes.

Fomos atendidos por uma empregada de mesa (depois também por outras) muito simpática e com evidente elegância e reserva de profissionalismo que se aprende na escola. Também aqui nota máxima para um jovem escanção, que também fazia de chefe de mesa. 

Como é nosso hábito, e até o dia o exigia, a começar por um bruto. Neste caso foi um muito bom Varosa  2010, que não conhecia. Devia dizer o que bebi a seguir, mas perdi as minhas notas do jantar. Como a morena não bebe álcool, fico sempre por um copo, neste caso de branco. Era um Douro excelente, guardado em madeira, cor forte, sabor a mel. Memorável, mas lamento ter perdido a referência.

Ao princípio vem o pão, mas, ao contrário do que se vê frequentemente, não servem manteigas. Disseram-me, pareceu-me que com alguma sobranceria, que era critério do chefe. Eu gosto, não acho que seja mau nível, mas não vou discutir.

O “mimo do chefe” pareceu-me pesado e desequilibrado, com coisas muito boas e outras menos. Bem conseguidos, uma sandes de batata frita finíssima com recheio de pasta de salmão, mais uns minicones cheios de merengue de azeitona, uns pãezinhos injectados com um líquido aromático (caldo?) que não consegui identificar. Com isto, pesada e em pedaço demasiado grande por comparação com os demais, uma tempura de alheira com polme de tinta de choco. Decididamente, tendo comido muitas experiências de adaptação da alheira a cozinha de autor, nada me convence, a menos que seja para substituir pão.

O primeiro prato estava sublime. Maçã laminada muito fino, a fazer forma para recheio de foie gras, com pingos de puré de maçã (a repetição não ficou mal) e redução de vinho do Porto.

A seguir, carabineiro com feijoada. Menos conseguido, com feijão branco um pouco agreste. Preferiria um feijão mais suave (catarino ou manteiga, e em menor quantidade). Com uma espuma saborosa que a perda das minhas notas não me permite agora identificar. Tenho ideia de que de azeitona.

Muito bom, a evocar a cozinha tradicional (? noutro dia discutirei se a base deste arroz é tradicional), o arroz de tamboril. O arroz muito bem feito, dose certa de legumes e coentros, o peixe em rodelas à parte provavelmente feito separadamente, ao vapor (?), tudo acompanhado por fatias de camarão com uma amostra generosa de caviar Sevruga.

A seguir, para um grande adepto de fumados como eu (admirador das experiências do Henrique Mouro e agora do João Sá no Assinatura e possuidor de um defumador), um prato muito bem conseguido. Chama-se “fim do churrasco”. Chega à mesa uma campânula cheia de fumo que, ao destapar-se, mostra dois pequenos nacos de vitela grelhada, pão corado de verde a simular ervas e azeitonas secas raspadas, a evocar as cinzas.

Menos conseguido, pesado, foi o prato final de carne, embora muito bem confeccionado: vitela assada no forno, molejas, cogumelos, batata assada recheada com concentrado de cozer rabo de boi e tapada também com cogumelo. Essencialmente, a meu ver, falta-lhe contraste de sabores e texturas (e até de cores, tudo castanho).

A passar de novo para a elegância, a muito boa pré-sobremesa: frutos silvestres com compota de laranja, tudo em caldo de eucalipto. A seguir uma sobremesa de alta técnica. Uma laranja feita com “casca” de agar-agar (julgo eu) bem temperada com laranja, a envolver um recheio de maracujá e coco, mais um xarope muito espesso de manjericão. Com um muito bom vintage da casa, em garrafa de decantação, que, novamente por perda das minhas notas, não posso identificar.

Ao fazer a reserva e dizer que era jantar para dois, perguntaram-se se era ocasião especial. Pelos vistos, os casais já não jantam bem fora sem ser por obrigação. No fim do jantar, em honra da morena, uns minibolos de bolacha coberta com creme de pasteleiro e uma vela acesa, mais duas flutes de espumante. Muito simpático!

Depois, a conta. Achei pesada, quase o que se paga em Lisboa no Belcanto ou no Guincho, por exemplo, que me parecem estarem um degrau acima. Mas é preciso atender principalmente à enorme quantidade do menu, exagerada, segundo a tradição de fartura de comer dos nortenhos. No fim, do prato de carne, para ter reserva de espaço para as sobremesas, só comi metade.

De qualquer forma, um restaurante francamente recomendável e uma experiência a recordar bem um aniversário querido no Porto.

domingo, 29 de setembro de 2013

Ronda de restaurantes – À parte

Dies gulae, dies illa, dias complicados de obrigatoriedade de restaurante. Começaram ainda em Lisboa, com sugestão familiar para um restaurante onde só tinha ido uma vez, o À parte. E não tem petiscos! Tem originalidade quanto baste, “charme”, mas não o estilo de restaurante de “tias” que me enjoa. A graça vem de se ter instalado num rés-do-chão da Defensores de Chaves, com salas minúsculas em que por vezes só cabe uma mesa para seis, mais um agradável jardim.

Não é restaurante de que possa fazer apreciações superlativas, mas é bem razoável, justificando-se principalmente, como disse, pelo ambiente. No entanto, com alguns senãos, desde logo a começar pela ementa, com excesso de bifes e risotos. Nestes, alguns casos são francamente lamentáveis, como um risoto de alheira, em que, obviamente, o enchido só dá massa betuminosa ao risoto, ou um risoto de perdiz com farinheira (que desperdício, mesmo para ave de capoeira!). Provei logo três dos risotos. Todos mal cozidos, por quem sabe que um risoto deve estar ligeiramente ao dente, mas só ligeiramente, e não se atreveu a ir mais longe do que a evidente má cozedura do arroz.

Eu pedi umas lulinhas à algarvia. Muito bem feitas, com batatinhas novas bem no ponto, molho bem apurado, mas aí é que estava o problema. Vinham, no prato, com salada a embeber todo o molho e a misturá-lo com a aguadeira destilada da salada. Pior, as lulas vieram quase ao natural (de temperatura!). Salada é à parte, senhores, como diz o nome do restaurante.

Serviço um pouco atabalhoado, como é regra geral nos nossos restaurantes, mesmo com alguma pretensão, a recorrerem a jovens brasileiros muito simpáticos mas sem escola. Uma das convivas pediu um bife mas, das guarnições, só queria batata frita e salada. Primeiro veio o trio, isso e mais arroz, depois arroz e salada e foi preciso esperar pela terceira vez (enquanto as minhas lulas arrefeciam lá no balcão).

Em resumo, um restaurante simpático mas também exemplar do que não se pode fazer sem ofensa básica ao profissionalismo. Valha o ambiente, como disse, e uma boa relação qualidade-preço. À volta de 10 € por um bife não se encontra facilmente.

terça-feira, 17 de setembro de 2013

A praga da petiscada

Lisboa está invadida pela petiscada, de alto e baixo nível (em fama, preço e marketing, não em qualidade, como direi). Antes de ir ao substantivo, algumas divagações. Muito do que se chama petiscos são, cá e na minha terra, os pratos de todos os dias de uma cozinha familiar burguesa, entre pratos “de tacho” ou completos e coisas que se podem fazer para comida acessível ao balcão – salgados, saladas, arrozes, feijoadas, etc., etc.

Fui de uma época em que restaurantes e tascas desleixaram isto. Guardo grata memória de algumas coisas, como a Tendinha do Rossio (com aquela sandes mista de presunto e queijo fresco, novidade da casa, que fazia perguntar ao freguês novato "quer com azeite e vinagre?", para gozo da malta useira). 

Sem desprimor para alguns exemplos que agora não recordo, eventualmente de bairros que não eram o meu, a renovação mais marcante foi a Carsédia. Coisa estranha, era uma sucursal do Tavares, quem diria. A estratégia de diversificação do Tavares, injustamente caído em desgraça no 25 de Abril como símbolo do antigamente, começou com o andar de cima, depois com o Tavares Pobre e a Carsédia. A seguir, o Sr. ?, cujo nome não recordo, embora me lembrando muito bem da cara, fez sucesso no self do Centro de Arte Moderna da Gulbenkian e no “shopping” Gemini.

Depois de muitos anos de substituição dos petiscos tradicionais por banais bitoques, hambúrgueres e carnes de porco à portuguesa, mais uns filetes desenchabidos, e de serviço de salgados de má qualidade em tudo o que é café (e só tarde com recuperação dos pastéis de massa tenra, mas com betume de carne como recheio), a moda hoje é a dos petiscos. 

Não tenho nada contra, muito pelo contrário, se forem bem feitos e postos no devido lugar: o de exemplo de cozinha tradicional genuína, desde a cozinha caseira até à cozinha de tasca (como fico a salivar com os ovos com linguiça da Ilustre Casa de Ramires!). Mas, para mim, sem deixar de ter de ser cozinha aprimorada e rigorosa em respeito pela tradição – com aceitável margem de inovação – é uma cozinha barata e despretensiosa, em restaurantes que, como por toda essa Europa, toleram empregados de jeans e ténis, guardanapos de papel e coisas do mesmo nível. Mas também a conta.

Em que difere de um restaurante de cozinha tradicional? É difícil definir. Diria que no fornecimento de doses pequenas, cada um a pedir duas ou a partilhar, numa cozinha que é marcada pela maior simplicidade e rapidez de confecção e, principalmente, pela tradição da sua venda em feiras, tascas e romarias, e em coisas que se comiam facilmente ao balcão, em pé, com o copo na outra mão (como no “Pai Tirano”, então um copinho de branco”).

Esta petiscaria tem vindo a marcar a restauração madrilena (menos a de Barcelona). Sou velho comedor em Madrid, de restaurantes e de tabernas de tapas, estas despretensiosas, de se comer em pé, cascas de camarão e de tremoço no chão. Hoje viraram semi-restaurantes para turistas e uns menus estilo tlinta-e-tlês – é verdade, 21 para Joao – à espanhola passam por genuína cozinha hermana (e que boa que ela é).

Essencialmente, a meu ver, uma petiscaria de qualidade se quiser inovação deve respeitar a lógica do serviço de petiscos, como disse, e dar ao estrangeiro a ideia do fundamental da nossa cozinha, ao mesmo tempo que oferece ao português alguma variação. Mas nunca a ponto de tentar apresentar esta “cozinha menor” com pequenas modificações e sugerir que isso é cozinha de autor, coisa bem diferente. Não se pode ter o bolo e comê-lo. Os chefes estão a ir para a petiscada porque não têm mercado para a sua cozinha de autor. Apresentar como tal cozinha barata é vigarice. 

“Petiscaria de autor” é o que se tem passado com as “novas petisqueiras”, de chefes consagrados. Se não me engano, foi Vítor Sobral que começou a moda, em Campo de Ourique. Limito a minha crítica, porque nunca lá fui, só conhecendo a ementa, banal. Também por algum preconceito porque, tendo em certa fase profissional viajado muito em classe executiva, sempre achei detestável o “catering” de Sobral para a TAP.

Há o novo caso do Chefe Cordeiro, sobre o qual já escrevi aqui. Há também o caso especial de Avillez, sobre que tenho “mixed feelings”. Acho a sua empadaria coisa deslustrante da sua imagem. À pizaria ainda não fui. O Cantinho é agradável mas não vai mais longe. Do Café Lisboa só falarei quando experimentar. Tudo isto me desabonaria o projecto Avillez, se não soubesse que é o preço a pagar para termos, ele e nós, o Belcanto.

Com isto, o que hoje ouço é jovens executivos, com cartão de crédito para restaurantes, não discutirem os bons restaurantes mas as petisqueiras à moda, de tias ou não, o ambiente giro de cadeiras que não condizem com a mesa, ou da patroa que nos trata por tu. Ter meios não é obrigatoriamente ter bom gosto.

E vem tudo isto a propósito de uma nota de Duarte Calvão, no Mesa Marcada sobre o provável fim do Pedro e o Lobo, agora com a saída de Diogo Noronha. Antes, tinha sido ou o sócio, Nuno Bergonse, para outra petiscaria, Ministerium, que até elogiei. A propósito, diz Duarte Galvão:
“(…) só espero que não enverede pela petiscaria, hamburgueres e pizzas para as quais já não há pachorra”.
Totalmente de acordo, como se vê pelo que escrevi nesta nota.

NOTA – Estava esta nota pronta a publicar e recebi notícia, muito a propósito, da Lisbon Week, com um programa gastronómico de Estação dos Petiscos

Esta Lisbon Week é coisa fora de estação turística e, por isto, temos de pensar nela como principalmente dirigida aos indígenas. Adianta alguma coisa? Até receio é que a banalização leve a enjoo, como temos pela comida de cantina. Não há fome que não dê em fartura. 

Aqui fica a lista. A concepção é de José Bento dos Santos, por quem tenho muita consideração mas que critico por frequentemente resvalar para coisas menos pensadas, quase de bandeira desfraldada, como a cataplana e o melhor peixe do mundo. Valha que estes pecadilhos ficam perdoados pelo Monte d’Ouro. José Bento dos Santos tem uma imagem importante, até internacional, que não pode deslustrar.
Esta Lisbon Week é coisa fora de estação turística e, por isto, temos de pensar nela como principalmente dirigida aos indígenas. Adianta alguma coisa? Até receio é que a banalização leve a enjoo, como temos pela comida de cantina. Não há fome que não dê em fartura. Aqui fica a lista. 
Caldo verde. Canja de galinha. Joaquinzinhos. Rissóis de camarão. Pasteis de bacalhau. Pataniscas de bacalhau. Carapaus de escabeche. Salada de polvo. Moelinhas. Pica-pau. Prato de mini-enchidos regionais. Meia-desfeita (bacalhau). Alheira de caça. Ovos verdes. Peixinhos da horta. Gambas ao alhinho (português?). Ovos mexidos c/farinheira ou espargos. Lista tão pobrezinha que nem me apetece comentar.

Para acompanhar, arroz malandrinho de feijão, arroz solto de alho e coentros, salada de tomate com oregãos (bem originalmente portuguesa, não de todo o Mediterrâneo?), ovo estrelado (espantoso!), batata frita.
Como doces, representando (?) a nossa riquíssima doçaria (ao menos mais o leite creme), apenas arroz doce, pastel de nata e mousse de chocolate.

segunda-feira, 16 de setembro de 2013

Salada de camarão com molho a evocar thermidor

Já sabem que não é regra deste blogue publicar receitas. É de gastronomia, não de culinária, muito menos de folheto de supermercado. Mas às vezes justifica-se, quando me sai alguma coisa mais inventiva ou bem conseguida.

Hoje vai uma salada (ou cocktail) de camarão. Sou do tempo em que eram excelente novidade, em marisqueiras (Solmar) e até em coisas despretensiosas mas que inovaram, como o Noite e Dia e o Galeto. Muito simples, alface ripada, camarões e molho cocktail (maionese, ketchup, nata, molho inglês, piripiri, uisque e vermute). Perdeu-se, “oh simple thing”. 

Continuo a fazê-la, mas apeteceu-me variar o molho.  Saiu coisa a evocar thermidor, o mês cujo dia 9 (27 de Julho de 1794) não me agrada muito. Mas há outra boa coisa também a evocar thermidor, e que me serviu de inspiração, mesmo que bastante à distância. Os leitores que se lembrem. Vai a receita desta minha salada no sítio habitual.

NOTA – Por razões que compreendem se forem ver a sua página de Facebook, e falando do 9 thermidor, esta receita é dedicada ao João Carlos Graça.

domingo, 8 de setembro de 2013

"Chefe Cordeiro", uma desilusão

Lamento escrever esta nota, porque me faz pena ver que uma situação difícil, de crise, pode fazer cair em desvalorização e mesmo degradação um profissional tão respeitável como é o chefe José Cordeiro.  Saindo do Feitoria, este talvez perca a sua estrela, mas o novo “Chefe Cordeiro”, no Terreiro do Paço, é que certamente não a ganha.

A crise tem afectado grandemente a restauração de alto nível. Há um ou outro caso bem sucedido de gestão inteligente da crise, como o Assinatura. Avillez paga pelo Belcanto o preço de alguma banalização sua, com o Cantinho, as empadas, a Pizzaria, o “cattering” e, agora, o café do S. Carlos. Não sei se não será areia demais para a sua carroça. Miguel Castro e Silva faz um bom compromisso entre a qualidade do seu O Largo e o nível de preços. Mais perigosa me parece ser a onda de “petisqueiras” de chefes, iniciada por Sobral. É preciso muita coisa para marcar a diferença em relação a tanta tasca e essa muita coisa paga-se – e lá vai o cliente que prefere ir menos vezes ao restaurante mas ir onde vale a pena.

Conheço José Cordeiro do Feitoria e recordo-o especialmente por ter sido um dos primeiros que me encantou culinariamente, já lá vão bons anos, antes de haver a nova vaga de chefes mais jovens. Também gostava do Mensagem, sob sua orientação, embora com uma relação qualidade-preço pouco louvável.  Não gostei do seu histrionismo e concessão ao comercialismo televisivo no Masterchef, mas isto é outra história.

Este novo "Chefe Cordeiro" deixou-me, globalmente, uma indiscutível (para mim) má impressão. Dirão que é cedo para fazer uma crítica a um restaurante aberto há menos de duas semanas. Foi essa também a desculpa do chefe de mesa (? duvido; era quem estava na caixa mas nem uma vez foi à mesa). Não concordo. Abrir um restaurante com responsabilidades de chefia antes de tudo estar afinado é coisa para fazer rir, como no “Playtime” de Tati, mas certamente não é coisa de profissional como José Cordeiro.

Julgo que há um andar de cima para jantares mais convencionais. Só posso falar do almoço, na esplanada. A ementa é quilométrica, ambiciosa, mas, por isto, sem critério e a querer agradar a gregos e troianos. Por exemplo, uma secção de suchis num restaurante de petiscos e pratos tradicionais com óbvia intenção de imagem portuguesa. Valha que os preços são razoáveis, com uma refeição entre os 20 e os 30 euros. 

As secções da lista são, além do couvert: petiscos e outros (20); ostras e suchis (7); tributo à cidade de Lisboa (7); entradas (6); pratos principais (16); queijos, doces e sobremesas (9). No total, 65! ofertas, muito mais do que aquilo com que, visivelmente, a cozinha e o serviço são capazes de lidar com qualidade. A grande maioria é banal e vê-se hoje em qualquer “petiscaria”. Eu não vou a restaurante de um chefe conceituado para comer salada de polvo em molho verde, atum com feijão frade, melão com presunto, salada de tomate com azeitonas, mozarella com tomate, salada de alface com queijo de cabra, mel e nozes, arroz de tamboril, polvo assado com batatas e grelos, etc. Os bifes convencionais justificam sempre a sua entrada na ementa, mas neste caso, fiquei surpreso com um “bife da vazia à café Nespresso”!

Condescendo em que há na ementa algumas ofertas mais atraentes, por exemplo: muxama (que não se encontra ao virar da esquina), chichos de vitela ou de porco bísaro, ovos rotos (nestes dois últimos casos, pratos espanhóis, mas o restaurante não afirma a sua exclusividade portuguesa), raia em manteiga noisette. Provados, em almoço a dois, foram cachaço de vitela maronesa com cuscos e posta à mirandesa com batatas e grelos. Ambas as coisas feitas muito respeitavelmente, com boa técnica (mas à defesa em relação a condimentos), no entanto sem deslumbrar. Como sobremesa, recomendada, “farófias à nossa maneira”, que não percebi como se distinguiam de qualquer outra maneira.

Confesso que, como disse, a experiência da cozinha foi escassa para crítica fundamentada, mas que essa crítica se justifica com a ementa e o serviço. O serviço deixa de rastos o restaurante. Como sinal, nunca tinha visto em Lisboa um quarteto de turistas deixar a mesa e ir-se embora, enquanto outro casal protestava a alto e bom som. Valeu-nos chegar cedo mas mesmo assim esperámos cerca de uma hora pelo serviço, com erros sucessivos. No fim, até tiveram de substituir o meu café por ter ficado uma eternidade a arrefecer, à espera de adoçante. Os empregados são um pequeno grupo (muito pequeno para o número de mesas) de jovens, aflitos, provavelmente sem treino e escola suficientes. José Cordeiro não pode condescender com isto.

E, já agora, ponha guardanapos de pano nas mesas. Já sei que vão dizer que é na esplanada, mas acho que é regra sem sentido. Se cair ao chão, dentro ou fora, o procedimento é igual.

quinta-feira, 5 de setembro de 2013

À lagareiro

Há quem me acuse de ser demasiadamente purista em relação à nomenclatura da cozinha tradicional. Não se confunda isto com coisas que aceito muito bem, aprecio e até faço, desde pequenos toques de personalização da receita tradicional até francas desconstruções ou, como digo em alguns casos, reconstruções (o que, para mim, tem significado um pouco diferente). Se não houvesse uma margem razoável de variação da cozinha tradicional não poderíamos dizer que tal prato é melhor feito por A do que por B, coisa importante para emulação e para auto-estima das nossas avós.

Neste mês de férias dentro, andei por tascas e restaurantes de petiscos (alguns bem pretensiosos e com preços de chefe que não consegue manter o restaurante de 1ª e julga que petisco “à chefe” é grande criação). Na Baixa, a oferta deste género e de cozinha classe-baixa para turistas é francamente má. Cartas banalíssimas, repetidas esplanada a esplanada. Pior, má confecção e desrespeito pelos padrões convencionais. Disse e repito: deve-se inovar (quando se sabe) mas deve-se avisar o estrangeiro – e até o portuga – de que se está a inovar. O consumidor que leu que o bacalhau à Gomes de Sá é um bom prato português (e concordo plenamente) tem o direito de o experimentar como ele é, não, por exemplo, como já vi, um mixórdia quase desfeita que é tirada do tacho sem ir ao forno e sem levar ovo cozido e salsa.

Isto vem a propósito de um exemplo característico, visível por todo o lado, o bacalhau à lagareiro (e agora o seu homólogo polvo). Exemplo que mostra como, por vezes, é difícil ter-se uma base sólida de definição mínima de uma receita tradicional. Julgo que é designação recente; tenho excelente memória e é coisa de que não me lembro, há 20 ou 30 anos. Confesso que não conheço a origem e não percebo o nome (a não ser que tenha a ver com o azeite; já lá voltarei). Dos compiladores clássicos e fiáveis de receitas tradicionais, só Maria de Lourdes Modesto o refere, como característico do Minho (? onde não se produz azeite e lagares só de vinho). 

Segundo MLM, é um bacalhau mais complexo do que se vê habitualmente com esse nome. O bacalhau, em cubos grandes, é marinado em leite com sumo de limão e alho. É escorrido, passado por ovo batido e pão ralado e assado no forno, com azeite e um pouco da marinada, servindo-se com batata cozida.

Mas já outras fontes (hoje principalmente da net e nem sempre identificáveis, como um sítio conhecido de receitas de bacalhau) o consideram um prato das Beiras, cozinhado em fornos dos lagares de azeite (há fornos nos lagares? Digam-me, porque creio que nunca estive num lagar). Seria um bacalhau assado simples, coberto com azeite e alho e acompanhado com batatas e cebolas pequenas, assadas ao mesmo tempo. Também se refere à Beira a receita do sítio conhecido “Mar da Noruega” (comercial?), com a diferença de omitir a cebola. 

Quanto à cebola, serve-se por aí para todos os gostos e feitios: crua, alourada em azeite, cortada em gomos estreitos e assada sobre o bacalhau. Ainda outra variante frequente de acompanhamento é o pimento vermelho, habitualmente assado mas que já me serviram cru.

Assim, nesta versão simples que hoje toda a gente encontra em qualquer tasca ou restaurante de bairro - e não só – porquê a designação “à lagareiro” que, ao que me lembro, não tem mais de 20 anos? Antes, era simplesmente bacalhau assado, ou no forno, ou na chapa ou na grelha. Normalmente, só com azeite, alho, batatas a murro e grelos. Será hoje para distinguir este bacalhau assado no forno de outros bacalhaus assados, na chapa ou na grelha? É útil, em época em que os assados no forno – excepto leitão, cabrito e pouco mais – andam tão desprezados e mal tratados. No entanto, uma churrasqueira razoável minha vizinha faz sempre o bacalhau à lagareiro nas brasas. Em que ficamos?

Ao contrário de outros casos em que tendo a invocar a autoridade dos mestres, creio que neste MLM vai ficar a perder. O bacalhau à lagareiro corrente generalizou-se de tal forma que ninguém se vai lembrar do que MLM descreve no seu livro de referência.

NOTA – Não me repugna nada o uso de uma qualificação de prato que evoca uma actividade ou um lugar de trabalho. Em França e na Suíça, as muitas coisas com vinho tinto, à “vigneron” (aqui, à vinhateiro), ou com produtos de salsicharia, à “charcutière” (aqui, à salsicheiro), desde a Bélgica a Espanha os bivalves à marinheiro, entre nós o bife à cortador ou a caldeirada à fragateiro, etc.

domingo, 1 de setembro de 2013

Feitos turistas em Lisboa

Este mês de Agosto a fanar-se foi de férias de crise, em casa. Como protesto, resolvemos ser turistas de dentro, nesta última semana, calções, Ray Ban, panamá, convite a fazer de turista para carteirista, que ainda tenho atravessado na garganta. Mas passemos ao demais, às coisas boas. Ficam aqui só as comidas, sem falar das coisas turísticas à margem, como voltar anos atrás a ver coisas tão vistas como a Sé (a precisar urgentemente de limpeza) e o castelo, mas também coisas novas como o arco da R. Augusta ou a magnífica exposição “Encomenda prodigiosa”, no museu da Igreja de S. Roque (falta-nos ver a parte das Janelas Verdes). 

1. Mas vou ficar pelas experiências prandiais destes passeios pela baixa, feitos turistas. A primeira foi no Ministerium, na ala nascente do Terreiro do Paço, um restaurante despretensioso de bifes e petiscos, creio que a cargo de Diogo Noronha, antes Pedro e o Lobo. Ao lado, da parte norte, o Museu da Cerveja, do qual, na net, não encontro informação relevante. Do outro lado, cheio, outro da cadeia Nosolo Italia, presumo que igual ao de Belém, onde vou, com gosto, de vez em quando. Defronte um restaurante com uma ementa desinteressante, o Aura, mais o novo “Chefe Cordeiro”, que certamente merece visita um dia destes.

Os restaurantes de petiscos são hoje quase uma praga. Nestes dias de passeio pela baixa verificámo-lo. Em regra, são da mais confrangedora banalidade. Exceptuam-se os dos chefes conhecidos, Sobral, antes Aroldi, Stanisic, agora Cordeiro também no Terreiro do Paço, mesmo Avillez que, com isto e empadas de centro comercial, sustenta o Belcanto. Este Ministerium é francamente recomendável, com a reserva que farei adiante.

Ficámos pela secção “para picar”. O picapau vinha muito bom, com um molho de mostarda, alho, cominhos, salsa e louro, mas fiquei a suspeitar de que também um pouco de leite de coco. Picles, que não respeitam a provável origem do prato (carne à feira das Mercês) mas que hoje o identificam e o uso faz a regra. Muito bem feitas as bochechas de porco (em bocado visível mas a derreter-se) com gnocchi e cebolinhas glaceada e outro petisco de polvo à Bulhão Pato, com um molho emulsionado de azeite, coentros e sumo de limão (para mim um pouco em excesso). A terminar, um bom leite creme e uma muito boa mousse de chocolate sobre geleia de laranja e coberta com esferas crocantes (arroz tufado e caramelizado?).

Tínhamos de marcar um jantar para mais pessoas, sexta-feira e, bem impressionados, com ajuda do local, voltámos a lá ir. Comemos o mesmo e mais outros petiscos. Que diferença. Tudo com pior confecção, sabores menos apurados. Por exemplo, a bochecha completamente desfeita. Percebe-se que uma noite de fim de semana em época turística não seja muito favorável à manutenção da qualidade de um restaurante, mas o problema é do restaurante, não do cliente.

2. Noutro dia, ao almoço, andámos pelo Bairro Alto. Há muito que a minha mulher tem predilecção pelos dois restaurantes de irmãos, o Sinal Vermelho ao almoço e o Lisboa à Noite, ao jantar. Não conhecia. O Sinal Vermelho não é daqueles restaurantes que me faça lá ir de propósito, como não faz nenhum de comida caseira, que cozinho bem em casa. Mas é certamente um local onde levaria um amigo estrangeiro que quisesse provar genuína comida portuguesa e muito bem feita, com grande variedade de escolha numa lista bem longa.

Só provámos dois pratos mas que, se significativos do conjunto, tornam o restaurante muito recomendável: magusto de bacalhau assado com migas de broa e couve portuguesa, tudo impecável, e almôndegas de vitela com puré de batata caseiro e couve lombarda, exemplo de velha cozinha caseira. Ficámos na esplanada, virando da R. das Gáveas para a Tv. do Poço da Cidade. Do outro lado, um outro restaurante sem um único cliente durante todo o tempo, enquanto que o Sinal Vermelho tinha bem duas dúzias, em almoço de Agosto. Disseram-me que são efeitos já bem notórios do hábito de turistas de consulta ao TripAdvisor ou ao LifeCooler.

3. Sexta feira ao jantar foi outra conversa, o menu de marisco do Assinatura. Vou começando a ser cliente habitual, mas creio que nunca comi lá tão bem. É pena que já não possa recomendar, porque o menu terminou nesse dia. Mas para que fique registo: 
  • Mimo do chefe – seviche de bacalhau com sálvia e hortelã da ribeira, suspiro preto com recheio de pasta de anchova, chutney de figo com uma haste de massa filo com alheira. 
  • Ostras, dashi (caldo leve de peixe, no Japão) português (? eu tenho uma versão portuguesa, mas cada um sabe do seu e eu sou amador), pérolas de tapioca, tiras finas de alga combu e pingos de iogurte fumado (o uso de fumados, muito bons, começa a ser uma marca do Assinatura). 
  • Creme de maçã acidulada, tiras de mação crua, picles suaves de cenoura, cebola e funcho, pingos de maionese com “saté” e açafrão, pastéis de recheio de santola.
  • Lingueirão, mais o bolhão e o pato (um achado): como bolhão, tostas muito finas com azeite e alho; como pato, lâminas finas de moelas de pato confitadas. Molho em duas partes, uma redução de pato e um creme com óleo de trufa.
  • O marisco e o arroz ( o mais convencional dos pratos, por isto o que me fez descer a nota em 0,5 valores, embora de confecção impecável): tamboril (para mim escusado), camarão, lagostim e lagosta, cozidos e envolvidos num molho de manteiga, acompanhados com arroz de bivalves segundo as melhores regras.
  • Pensei que a sobremesa fugiria ao tema mariscos. Nada disso. Gelado de camarão, “hóstias” fritas de camarão, figos, bolo húmido de chocolate.

Sou avezado do Assinatura e sempre saí de lá recompensado pelo jantar, mas creio que esta vez ultrapassou todas. João Sá promete e é bom sucessor de Henrique Mouro (a propósito, vi que o Tavares ainda está em remodelação). Dado que só conhecia – e não directamente – a experiência de João Sá no G-spot, com um género totalmente diferente de cozinha, mais “juvenil” ou “desportiva”, tinha curiosidade do que seria no Assinatura. Vivamente recomendável.