segunda-feira, 17 de março de 2014

Torresmos de molho de fígado

Na última entrada, a propósito do uso corrente de limões galegos nos Açores, falei de um prato típico micaelense que não os dispensa, os torresmos de molho de fígado ou, popularmente e em abreviado, molho de fígado. Há outro tipo de torresmos, os simples ou “de pauzinho” (por causa das costelas), de que não vou falar agora. 

Em qualquer dos casos, são confitados, conservados na banha solidificada. Por isto, era menos vulgar, na cidade, fazê-los em casa do que comprá-los nas barracas (o nome açoriano dos lugares de frutas e hortaliças). Quantas vezes os fui comprar ao Sr. Lopes, da Casa Verde. Retirados dos característicos potes grandes de louça da Vila, lá iam para casa já com a envolvente de banha para a fritura. Quem os apreciava removia boa parte dessa banha, como removemos a gordura de pato de um confit. Por isto me faz impressão ver hoje as pessoas nos supermercados de Ponta Delgada comprarem molho de fígado a nadar numa gordura enjoativa.

Note-se que também eram comida vulgar de taberna. Não era vergonha nenhuma no meu tempo ir de panela à taberna comprar alguns petiscos, mesmo que também alternassem com os feitos em casa – o polvo guisado em vinho de cheiro e as favas secas, assim como, no Balão da Ribeira Grande os célebres canarinhos.

Pela sua tipicidade e diferença em relação a tudo o que se faz no continente como rojões e semelhante (os torresmos nos Açores não são as tiras fritas de pele e toucinho), os torresmos de molho de fígado serão uma boa surpresa para os vossos amigos, com a vantagem de praticamente tudo se poder obter no continente. Excepção para a insubstituível malagueta micaelense e para a açaflor, (não é a curcuma ou açafrão indiano ou amarelo!) mas que já se vendem nas duas lojas açorianas de Lisboa (R. S. Julião, 58 e Av. Elias Garcia, 57). A caiena pode ser um longínquo substituto da malagueta, mas nunca o piripiri.

A carne de porco e o fígado, tudo em cubos grandes, são marinados em vinha de alhos com bastante limão galego e temperos. Vai a fritar na própria gordura ou com um pouco mais de banha primeiro a carne e mais tarde o fígado, molhando de vez em quando com um pouco da marinada. O molho deve ficar bem apurado, para o que contribui um bom pedaço de fígado bem desfeito. Como é vulgar na cozinha açoriana, pode-se comer sem acompanhamento. Quando há, é geralmente o inhame ou o minhoto, uma variante maios pequena e mais saborosa do inhame. Inhame decente é que também só se encontra cá nas tais lojas, porque o que se vende nos hipermercados é, para mim, incomestível. A alternativa é simplesmente batata cozida ou batata doce cozida.

Ao fim de muito revirar os torresmos e a banha dentro do pote, vai-se formando uma massa desfeita que se chama pé de torresmo. É uma deliciosa pasta para sandes. Hoje já se faz industrialmente, moendo os torresmos com um pouco do seu molho e, ao que me dizem, um pouco de vinho. Em casa, prefiro os que faço à moda antiga.

O molho de fígado da minha avó paterna era considerado uma especialidade e fazia as delícias dos 14 filhos (!). Nos jantares de família inteira, era prato habitual e não me lembro de quem o rejeitasse. Não deixou a receita e as minhas tias não eram muito viradas para a cozinha. Vale que herdei do meu pai uma excelente memória gustativa e, em experiências sucessivas com ele na prova final, que a princípio me deixavam muito frustrado (“está bom, mas ainda não é o da tua avó”), cheguei a uma receita que os sobreviventes da família garantem ser a da minha avó. Mais adiante, passarei essa receita.

Esse molho de fígado não diferia das variantes que descrevi nas carnes, no vinho nem no limão galego, mas sim nos condimentos. Propositadamente, não os referi acima, porque, na melhor recolha de cozinha micaelense, do já falecido Augusto Gomes, e em recolhas minhas, a variedade de temperos é muito grande: um ou mais de entre colorau, erva-doce, canela, pimenta preta ou pimenta branca, para além, claro de malagueta (pimenta da terra). As proporções também variam muito, de receita para receita.

Todos estes condimentos são marcantes na cozinha micaelense. As morcelas que maravilham os turistas levam o sangue coagulado, mais cebola e alho, temperado com malagueta, bastante canela e erva-doce. O debulho – sangue cozido esmagado num refogado – também é temperado com esses condimentos. Mais caracteristicamente, as “favas de taberna” (fava rica, de fava seca) levavam obrigatoriamente “temperos”. Julgo que é difícil encontrar lá este prato, do melhor da cozinha micaelense. Felizmente, posso dá-lo a conhecer aos meus amigos, porque me gabo de o fazer muito bem, aprendido na juventude com uma excelente cozinheira popular.

O que são esses temperos, popularmente chamados, com bom sotaque, “todolos tamparos”? Luís Aguiar, conterrâneo e velho amigo, conta nas suas histórias do Pico da Pedra (“Raiz Comovida”) que ia à mercearia a recado da mãe e que frequentemente o troco era dado em temperos. De facto, faziam-se na mercearia ou nos armazéns de secos e molhados. Faz recordar tempos muito antigos de passagem pelos Açores das naus da Índia e em que as especiarias também eram moeda, não tanto para compra de mercearia mas para mais avultado negócio de frescos.

Durante muitos anos não soube qual era a sua composição mais ou menos secreta – cada armazém diria hoje que tinha os melhores temperos do mundo, mesmo que o mundo se ficasse por S. Miguel. Foi por um amigo do meu pai já reformado de encarregado de um armazém que obtive a receita. Não é fácil de a fazer em pequena quantidade, pela desproporção entre os ingredientes, a pedir balanças de sensibilidade diferente. Aqui vai.
100 g de colorau (pimentão doce),100 g de erva doce, 20 g de canela, 5 g de pimenta preta, 5 g de cravinho, 5 g de cominhos. Se se quiser preparar uma dose pequena, 2,5 c. sopa de colorau, 2,5 c. sopa de erva doce, 1/2 c. sopa de canela, 1 c. chá de pimenta preta, 1 c. chá de cravinho, 1 c. chá de cominhos.
Vai então aqui a receita da minha avó que, com muito esforço, julgo ter recuperado e que a tal minha memória gustativa aprova.
500 g de lombo de porco, 750 g de entrecosto (da parte com mais carne), 250 g de toucinho, 500 g de fígado de porco em peça, 125 g de banha, vinha de alhos com 4 limões galegos (substituir por meia laranja, três limas e um limão grande). 
Cortar todas as carnes em pedaços de bom tamanho e deixar pelo menos um dia em vinha de alhos: um copo de vinho branco, 4 c. sopa de vinagre, 5-6 dentes de alho pisados com 1 c. sopa de sal grosso, 1 c. sopa de malagueta, uma folha de louro, 8-10 grãos de pimenta preta, 4 cravinhos, meia c. sopa de açaflor, 3 c. sopa de “temperos”, 4 limões galegos aos quartos, espremidos, água q. b. A minha avó juntava também uma isca de baço de porco, esfarelada.Numa panela sem gordura, derreter a banha do toucinho. Em alternativa, derreter banha. Juntar todas as carnes, bem escorridas e fritar bem a lume forte durante bastante tempo, mexendo, até secar o líquido, ficando só a gordura e as carnes estarem bem fritas. Entretanto, cozer à parte o fígado. Juntar às carnes a vinha de alhos coada, por partes e ferver, a apurar bem. A meio, juntar o fígado, tirando alguns pedaços que se esmagam bem num pouco do caldo e que se misturam com o molho, a engrossá-lo. Também há quem frite o fígado cru na fritada das carnes, mas fica muito seco e duro. Prefiro cozê-lo à parte e juntar só quase no fim.

segunda-feira, 10 de março de 2014

Estou sempre a aprender

Desde há algum tempo, tendo começado por brincadeira de uns bem divertidos e passando a coisa séria, reina a moda de “o melhor do mundo”. Há uma versão especial desta afirmação perentória de quem não sabe nem pode saber mais do que a sua própria experiência permite. É o melhor do mundo segundo Miguel Esteves Cardoso (MEC).

MEC sabe de tudo e sobre tudo opina como árbitro de elegâncias. Ele sabe as regras ínfimas sobre o chá perfeito, até se leite primeiro ou chá primeiro. Ele conhece sempre, mesmo que a léguas de Colares, o único fornecedor decente de salsa ou de coentros. Opina sobre todas as suas séries televisivas, que ninguém consegue ver em 24 horas diárias. Ele e a sua Maria João, sempre despudoradamente exposta à quebra de privacidade nas crónicas de MEC, entretêm-se no jogo ultra-snob de se esconderem um do outro na perfumaria para escolherem uma fragrância (claro que ele nunca diz perfume) que depois verificam que condiz com a escolha do outro. irresistível, como “charme discreto da burguesia” (decadente).

Para o que conta neste blogue, centro-me nas divagações gastronómicas de MEC. Vive de saber que quem sabe não está para perder tempo a corrigi-lo. Quando ele escreveu um chorrilho de erros pedantes sobre bivalves, foi desfeito, elegantemente, por um especialista. Também eu uma vez, neste blogue, mostrei a ignorância de MEC sobre a gastronomia açoriana, por ele discutida num capítulo do seu livro “Em Portugal não se come mal” e em diversos artigos nos suplementos do Público.

E foi também agora no Fugas que aprendi tudo o que, superiormente, MEC tem a ensinar-nos sobre a arte única de preparar caipirinhas. Admito que estou pior colocado do que em relação à gastronomia açoriana. De caipirinhas (não falo das variantes em ochka e similares) só sei o que me ensinaram duas competentíssimas amigas brasileiras, o que provei em muitos e conceituados bares ou em botecos mesmo populares, no Rio ou em Salvador e, já que estamos em época de YouTube, tudo o que por aí anda de vídeos com demonstrações de barmen reputados. 

Assim, quem sou eu para duvidar do que são as regras máximas de MEC? Que o gelo deve ser em cubos, quando uma das tais amigas, dando-me a tarefa de a ajudar, me vigia sempre o tamanho do gelo que estou a picar? Fora isso, as regras são tudo o que qualquer pessoa comum sabe cá deste lado do mar: cachaça de boa qualidade, limas em bom estado e retirada a parte branca central, cortada em gomos que são cuidadosamente premidos contra o açúcar, sem esmagar demais. É novidade?

Mas no meio da minha ignorância sobre esta lição de MEC, há coisa em que provavelmente tenho muito maior experiência: o limão galego. Duvido de que MEC alguma vez o tenha comido, coisa que fiz desde criança, numa ilha em que eles são vulgares e indispensáveis em alguns pratos tradicionais, como os torresmos de molho de fígado.

Diz MEC que a caipirinha genuína é feita com o limão galego, hoje muito difícil de encontrar. Não sei onde foi buscar essa informação, mas não a ponho em dúvida, admitindo que a fonte de MEC é fidedigna. O que é bem sabido é que hoje toda a gente, mesmo a mais conhecedora e profissional, usa no Brasil o que cá se chama lima, a lima verde.

Nesta história de limas e limões, MEC enreda-se como quem não domina muito a botânica. Começa por designar o limão galego como Citrus aurantiifolia, quando de facto é Citrus x aurantifolia. O x quer dizer coisa muito importante, que se trata de um híbrido e não de uma espécie. Ao que julgo saber, não é assim tão rara no Brasil e usa-se indiferentemente da lima mais comum, dependendo do gosto – o limão galego é mais ácido e, nos Açores, tem um pequeno toque de sabor a laranja. A lima persa, a outra mais vulgar variedade e a que mais nos chega cá, é também chamada, como diz MEC, a lima Taiti, um híbrido com designação científica Citrus x latifolia. Não deriva é de limão da Pérsia, que não é, como escreve MEC, o Citrus aurantium, designação sim da laranja amarga. É, sim, o também chamado limão doce, Citrus limettioides. Quanto ao outro progenitor, que dá o nome latifolia, é uma outra espécie, conhecida como limão Bearss. Quanto ao limão cravo (Citrus limonia) de que fala MEC, um híbrido de mandarina e limão, não tem nada a ver com esta história.

NOTA – Fiquei com curiosidade sobre a fontes de MEC. Duvido que tenha recorrido a boas fontes científicas, sobre citrinos. Encontrei o que talvez ele tenha lido, tão semelhantes são as “informações”: alguns sítios da net, de amadores, sobre cozinha brasileira.

terça-feira, 4 de março de 2014

Carnaval açoriano

Uma das mais visitadas das entradas neste blogue é sobre as malassadas micaelenses. Hoje, terça feira de Carnaval, é dia de recordar essa entrada. Isto porque os fritos, cá feitos e comidos no Natal, são costume açoriano típico do Carnaval. Fazem-se lá os conhecidos fritos doces, filhós, coscorões, sonhos, rosas do Egipto, e também as tais malassadas que descreverei já a seguir. Há alguma diferença de nomenclatura. Por exemplo, as filhós açorianas são fritos de massa semelhante à dos choux, por isto muitas vezes recheadas com creme. Já as filhós continentais é que são mais parecidas com as malassadas de S. Miguel. Malassadas também se fazem na Madeira, mas nunca provei e não conheço a receita, pelo que não posso comparar com as micaelenses.

Escrevo malassadas segundo o uso estabelecido, mas de que não gosto. Como discuti então, as malassadas (de mal-assadas?) descritas em crónicas antigas são um prato de ovos vulgar nas viagens marítimas e que nada têm a ver com uma sobremesa. Parece-me que o nome correcto é melaçada, de melaço, o açúcar mais usado nos tempos do povoamento dos Açores (obviamente, nunca dizemos colonização, nas ilhas).

Relembro uma das muitas receitas, a que faço:
2 kg de farinha, 6 c. sopa de açúcar, 12 ovos, 250 g de manteiga, leite q. b., 40 g de fermento de padeiro, 1-2 cálices de aguardente, raspa de limão.  
Diluir o fermento em leite morno. Amassar tudo muito bem, juntando um ovo de cada vez, até a massa estar fina (com consistência de polme grosso) e deixar levedar em lugar quente, num alguidar embrulhado em cobertores. Untar as mãos com óleo ou leite  e separar pedaços de massa, que se achatam em disco alto de cerca de 15 cm de diâmetro, com menos massa ao centro. Fritar em óleo bem quente. Servir frias, polvilhadas com açúcar ou com açúcar e canela.
Fecho a secção culinária e passo à memória do carnaval de S. Miguel, no meu tempo de criança. Deixo de lado o terceirense, a que também estou ligado por via materna, com base em danças populares muito interessantes. Em S. Miguel, o Carnaval prolongava-se por quatro semanas, às quintas feiras: de amigos, de amigas, de compadres, de comadres, todas pretexto para os assaltos, em que grupos de mascarados tomavam de surpresa (real ou fingida) as casas do seu círculo para grandes festas. Nas mais das vezes, eram festas mais organizadas, como as das festas de longa dançaria do meu grupo de amigos e amigas do liceu, muitos já misturando amizades com namoros.

Entretanto, preparava-se a batalha da água, de terça feira, com infantaria – a maioria das tropas –, artilharia e cavalaria. Claro que estes termos estou eu a lembrar-me deles agora, mas vêm a propósito. A infantaria, quase tropa de comandos, combatia sorrateiramente, de surpresa às esquinas, armada com uma enorme seringa de lata, que abastecíamos em postos estrategicamente distribuídos. Nestes postos, assentavam praça os de artilharia, com armas pesadas, principalmente mangueiras, abastecidas por grandes bidões cheios de água. A cavalaria vinha em camiões, também com seringas e mangueiras.

A par disto, as limas, formas de parafina cheias de água. Ninguém deixava de ter os moldes para as fazer, coisa que preenchia horas a fio nas semanas antes da batalha. Em casos felizmente raros de brutalidade, havia quem fizesse as limas maciças, sem água… Coisa que dividia as opiniões era se se devia ou não proteger com gabardinas ou oleados de pescador. Nunca o fiz, porque ao fim e ao cabo ficava-se ensopado à mesma e a temperatura nos Açores é sempre amena.

Da molha geral havia isenções consensuais: pais com crianças não combatentes, soldados, bêbedos e danças. Estas danças, que desciam de fora da cidade (em S. Miguel, havia a cidade e tudo o mais, que era “fora da cidade”), ainda me fazem sorrir. Grupos de marmanjos, aos pares, “elas” às vezes com bigode, com arcos floridos de papel e comandadas por um garboso capitão de espada desembainhada, com bicórneo de plumas e sempre a apitar. Por vezes, uma dança de cadarços, do tipo das velhíssimas danças de entrançamento de fitas num poste vertical. Seja como for, constante de todas as danças eram a paragens frequentes nas tabernas, com os efeitos que se calculam e a total perda de elegância e comedimento de maneiras de tão donairosas donzelas dançarinas (olha, olha, vejo que isto dá 3D e política! Desculpem, é dia de carnaval).