sábado, 26 de abril de 2014

Entre Açores e Angola

Já a Páscoa vai com quase uma semana e ainda não falei dela. Cá em casa, de açoriano e angolana, é coisa diferente do que por aí vai mais frequentemente, como padrão gastronómico. Quanto ao prato principal, empadas de peixe pelo lado terceirense e caldeirada de cabrito pelo lado angolano. Tudo ao almoço, também ao arrepio da tradição ilhoa, em que as festas familiares e de datas solenes são sempre de jantar (ou eram). Em Angola, imposição do clima, não se deixa para tarde as refeições pesadas.
A caldeirada de cabrito é coisa que só comi, em Angola, quando lá estive, em serviço militar na Marinha. Não é só da Páscoa, mas falo dela porque, sendo hábito o cabrito nesse dia entre os colonos, passou a devoção à caldeirada. No entanto, não creio que seja só prato de colonos, apesar de lhe faltarem ingredientes tipicamente angolanos, como o óleo de palma ou os quiabos. De facto, comi muitas caldeiradas, no Zaire, em “povos” africanos. E até sem ser de cabrito, magníficas caldeiradas de antílopes pequenos ou até, imaginem, de macaco (nada má, mas um pouco adocicada). Não estou a brincar; garanto que também comi filetes de crocodilo, mas destes não gostei nada…
A caldeirada varia muito, embora respeitando, em geral, os ingredientes e a forma básica de confecção. Creio que se passa isto mais com a cozinha angolana feita pelos colonos do que com a dos continentais ou ilhéus, habituados a normas mais consagradas desde há gerações. Os angolanos brancos aprendiam com parentes mestiços ou com a criadagem negra e nem sempre mantinham a genuinidade da cozinha. Ainda hoje noto isto, julgando que já aprendi cozinha angolana com quatro gerações de experiência.
Aqui fica então a receita tal como se faz cá em casa, herdada da família angolana e ainda muito bem feita pelas representantes das duas gerações sobreviventes.
Para 6 pessoas. 1 cabrito de 2 kg, 4 cebolas, 6 dentes de alho, 2 tomates grandes ou 3 médios, 2 kg de batata, 2 pimentos verdes, médios, 1 cálice de aguardente ou de uisque (conforme o gosto), 2 dl de moscatel, 2,5 dl de vinho branco, sal, pimenta preta e branca, moídas a fresco, em partes iguais, 1 folha de louro, 1 dl de azeite, jindungo moído (piripiri) a gosto. 
Cortar o cabrito em pedaços e temperar de véspera com o alho e o sal pisados em almofariz, o louro, o vinho branco e umm pouco de água. Cortar as cebolas e as batatas às rodelas, o pimento em tiras e o tomate, sem pevides, em cubos pequenos. Cortar os topos das batatas, que só dão rodelas pequenas, em aparas finas, para engrossar o molho. Num tacho largo, alternar em camadas o cabrito, os legumes e as batatas, devendo ser de batatas a primeira e a última camada. Temperar, levar à fervura e cozer tapado, a lume médio, agitando o tacho de vez em quando.
Já nos Açores não há tradição de se comer cabrito ou borrego e o prato tradicional de Páscoa, conforme as famílias, gostos e posses, varia entre as carnes mais festivas, vaca, porco ou galinha. Em miúdo, não me lembro de alguma vez ter comido cabrito ou borrego e, das recolhas que tenho feito, só apanhei uma ou duas referências a carneiro adulto, assado em peça. Carneiro e ovelha, nas ilhas, eram para lã e, uso bizarro, para puxar carroças. Vejam a foto. Quanto a cabrito, como me parece natural, só conheço cabrito assado, depois de temperado em vinha de alhos, nas freguesias orientais de S. Miguel, onde havia rebanhos que forneciam excelente queijo de cabra, até a brucelose se tornar endozoótica.
Velho hábito pascal açoriano, mas só na Terceira, é o das empadas de peixe. Nunca encontrei equivalente cá. Aliás, é um hábito estranho, porque depois da abstinência da quaresma e da semana santa o que se queria era comer carne, não continuar com peixe. Havia quem as fizesse em casa, como na minha família, mas o mais vulgar era encomendá-las nas pastelarias, juntamente com outra coisa típica, a massa sovada. Pontificavam como especialidade as da Pastelaria Athanázio,  de um tio avô meu, famosa também pela variedade e qualidade dos doces que a minha avô inventava para o cunhado vender. Há poucos anos ainda lá comi alguns, mas sem o segredo dos que a minha avó nos fazia. Ai, os torresmos doces ou os covilhetes de leite!
Há muitas receitas modernas de empadas de peixe, incluindo legumes e variados outros ingredientes, ou simples variação das habituais empadas de galinha. Esta receita é a tradicional, tal como se fazia na minha família materna, as tais que se vendiam na Pastelaria Athanázio.
Uma garoupa pequena e 2-3 postas de cherne, 250 g de nozes, uma cebola, 2 dentes de alho, um ramo de salsa, uma c. sopa de banha, 3 c. sopa de azeite, 2 c. sopa de vinagre, 100 g de azeitonas pretas, sal e pimenta branca. Para a massa, 0,5 kg de farinha, 125 g de manteiga, 125 g de banha, 2 ovos, 2 c. sopa de açúcar e sal. 
Amassar bem os ingredientes da massa e deixar descansar enquanto se prepara o recheio. Fritar ligeiramente os peixes, às postas e desfazê-lo às lascas. Ferver o molho, feito com as nozes muito bem pisadas, o azeite e a banha, a cebola e o alho picados. Juntar o peixe e, se necessário, um pouco de água e ferver mais uns 2 minutos. Separar o peixe suficiente para o recheio mais 2,5 c. chá de molho por empada. No fim, a salsa picada e as azeitonas descaroçadas, temperando com pimenta branca. Deixar algum tempo no frigorífico, a solidificar o molho. Fazer as empadas em formas próprias e rechear com o peixe, o molho e as azeitonas. Tapar com massa. Pincelar a tampa com gema batida e levar ao forno, a 220º. Serve-se acompanhado com o resto do molho e com uma salada simples.

quinta-feira, 3 de abril de 2014

Aposta na qualidade

Como muitos dos meus leitores, sou de tempos em que nem se pensava em supermercados. Nem sequer havia o conceito de comprar muita variedade de coisas no mesmo lugar. Na minha cidade insular de criança, comprava-se a carne no talho (a que os mais velhos ainda chamavam açougue) e o peixe no mercado do peixe ou ao vendilhão que, com dois cestos em extremo e outro de grossa vara ao ombro, nos batia à porta ou alertava com o seu “é pêxe gróde e frasque”. Fruta, hortaliça e legumes eram nas barracas (lá não se dizia lugares de hortaliça) ou no mercado, mas abrindo este só ao fim de semana. Pão era na padaria mas, mais vulgarmente, era deixado na saca pendurada da mão da porta (um micaelense não sabe o que é puxador). Também batia à porta o leiteiro. Sabão e coisas de limpeza, na drogaria.

E tudo o mais de manducáveis? Nas mercearias e nos armazéns de secos e molhados. Estes, que vendiam a grosso, eram para as compras do mês, entregues em casa por marçano a puxar carroça de mão, que rapaz também tem serventia para tracção animal. Para o dia a dia, a mercearia, com a inevitável caderneta. Já nos anos 60, eu jovem casado em Lisboa, tinha como merceeiro o Sr. Ramos, que nunca me deixava liquidar mensalmente a conta da caderneta. Tinha de ficar sempre qualquer coisa porque assim, dizia ele, eu devedor tinha de continuar cliente.

Na minha cidade havia muitas mercearias, mas só uma era especial, a Zenite. O nosso merceeiro não se ofendia de se ir especialmente à Zenite, porque só lá se encontrava um bom vinho do Porto, um ananás especial, bons chocolates, outras coisas para ocasiões especiais. Chamávamos à Zenite uma mercearia fina, como em Lisboa havia a Jerónimo Martins e outras.

Lembrei-me de tudo isto porque há dias petisquei numa dessas mercearias que vão aparecendo muito por aí. Como não me repugna fazer publicidade quando é merecida, falo da Mercearia 29, no Bairro de S. Gonçalo, junto à Marginal, em Carcavelos.

Não é uma casa de gourmet e não o quer ser, pela conotação de coisa cara que muitas vezes se associa a essa qualificação. Faz bem, tanto quanto vejo pela falência sucessiva de duas “gourmet” no meu bairro, a Quinta Grande em Alfragide. Apesar de ser uma zona de classe média-alta, as pessoas reservam as compras de alto valor e qualidade para as boas lojas especializadas. O que querem na sua zona residencial, de dormitório, é uma coisa onde comprem o trivial, mas de boa qualidade e com um toque de qualidade extra. Uma outra mercearia que abriu na minha zona como “gourmet” reconverteu-se sensatamente a este tipo de loja em que se compra do mais simples ao mais especial, incluindo carne fresca de muito boa qualidade.

Neste sentido, lembro-me da mercearia fina. Não é loja de "gourmet", mas o responsável deve ser (e é) "gourmet". A Mercearia 29 de que agora dou notícia tem de tudo, mas tudo com qualquer coisa de valor: a fruta e os legumes vindos directamente de produtores seleccionados, uma gama limitada de produtos alimentares de tipo industrial mas de qualidade comprovada, porque nada se vende lá sem prova exigente da responsável, uma boa garrafeira com vinhos de boa relação qualidade-preço e uma boa oferta de produtos tradicionais e regionais (doçaria, compotas, queijos, etc.). Ao fim da tarde, pode-se petiscar muito disto, mais salgados de muito boa qualidade e uma tábua de queijos e enchidos, com vinho a copo. Recomendo.