domingo, 11 de outubro de 2015

Uma cozinha que merece mais

Não conhecia o 100 Maneiras (restaurante, não o bistrot), aonde fui há dias. No cômputo geral ficámos satisfeitos, mas, como digo no título, principalmente com a cozinha. Começo pelos contras.
O restaurante está instalado num pequeno espaço do Bairro Alto, atamancado e de mau nível. Longe já vai o tempo (Aviz, Tavares, Carlton) em que o pagante de refeição de autor e cara gostava de um ambiente requintado, com dress code a condizer. Aqui, é a condizer com o mau nível arquitetónico, a entrada exígua para espera, o mobiliário rústico, a má acústica (ainda por cima com mesas muito próximas umas das outras), a demasiada informalidade do traje do pessoal (e tirem aos ajudantes de cozinha o boné à Cordeiro, que já não se pode ver). Tudo isto é inspirado no Noma?
Outras notas pró e contra. Toiletes irrepreensíveis. Serviço atencioso mas com muita demora entre os pratos, tanto mais que só há um menu fixo, de degustação. água das Pedras à descrição, em vez da hoje vulgar água filtrada. Boa informação sobre os pratos e sobre os vinhos. Preço razoável (58 € por degustação de 9 pratos) mas menos razoável em relação à prova de vinhos (35€).
Passemos ao menu. 1. Estendal do bairro. Uma ideia original, bolachas finas de bacalhau desidratado pendentes de molas de roupa, a molhar em “dip” de aioli e molho de pimento vermelho. 2. O brejo largo. Excelente composição de ostra, amêijoa, sapateira, espuma de ouriço e clorofila de coentros. Enganei-me no meu receio antecipado de que o sabor da ostra seria abafado. 3. Maresia; carabineiro com gotas de espinafre e couve flor. Foi o que menos me agradou, a textura mole do marisco cozido a baixa temperatura. 4. Horta. Um prato vegetariano, de legumes cozidos sob vácuo. 5. Let´s pump. Pampo (no dia, garoupa) com migas de coentros, fio de arroz e ar do mar. 6. Baltazar. Morangoska com caviar de hortelã. Não percebi a razão do nome. 7. Expressionismo. Entrecote maturado, puré de ervilhas,cogumelos nameko e trigo sarraceno (novamente, que conceito?). 8. Ilhas dos tesouros. Banana, gelado de marmelada, queijo de S. Jorge, coco e esfarelado de bolo de mel da Madeira. Fora o coco, ingredientes típicos ilhéus, em boa combinação. 9. Esquizofrenia. Boa designação para gelado de foie gras com crumble de cogumelos.
Imaginação de cozinha de autor, ao estilo conceptual, numa sequência bem ligada. Confecção impecável. Por isto é que disse ao princípio que a cozinha merecia mais de tudo aquilo que também faz um restaurante.

terça-feira, 30 de junho de 2015

O Talho

Há já algum tempo que desejava ir ao Talho, depois de ler boas críticas. Hoje vai a minha, em estilo telegráfico. Espaço agradável, com boa decoração, ao estilo do que gosta a clientela: jovens gestores ou yuppies que não estão a sofrer a crise nem o desemprego de licenciados. Com esta clientela, e uma mesa de turistas, fora nós, era o padrão de moda e sucesso do restaurante. Vamos a ver com o CookOff, porque esta clientela cultiva-se hoje gastronomicamente é com Masterchefs e que tais. 
Péssima acústica, a impedir qualquer conversa mais aconchegada. Nos sanitários, um dispensador de toalhas de papel, preso à parede, como se vê em qualquer tasca. Amesendação correta e serviço muito aceitável, com excesso de casualidade dos uniformes, mas de acordo com o restaurante (Nota – já raramente se vê pessoal de mesa com casaco e gravata).
Couvert de bons pães, incluindo papari, uma boa pasta de fígado e duas manteigas, uma de parmesão e outra de especiarias tailandesas. Com a água filtrada, fica por 7,25 €, o que, somado aos 45€ do meu de degustação, é carote. Vamos ao que se comeu. No entanto, a refeição é carta é mais razoável, com entradas entre 9 e 11 € (fora o foie gras), pratos entre 17 e 23 € e sobremesas à volta dos 6 €.
Croquetes. Uma desilusão. O que tinham de bom, o sabor dos restos das carnes de cozido, com destaque para hortelã, tinham mau de confecção, moles, molhados, com o polme a soltar-se dos croquetes. Em contrapartida, uma boa maionese de chouriço, nada agressiva.
Ceviche. Muito bem, com ótimo peixe (qual? esqueci-me de perguntar), o leite de tigre muito equilibrado. Pequena crítica: um fundo de puré de batata doce, muito aguado, a não adiantar nada ao misturar-se com o molho do ceviche.
Foie gras. Vinha foie gras maturado, cereais tostados, geleia de saquê e líchias. Muito boa a combinação asiática com as líchias. Foie gras de muito bom nível, mas com excesso de sinais da salmoura.
Bochecha de vitela sobre cuscus de frutos secos e legumes à grega. A bochecha estava excelente, estufada a baixa temperatura, a desfazer-se. Cuscus muito bem temperado, os legumes marinados em vinho branco e salteados, ao dente. Nada a reparar.
Borrego tandoori, chutney de pêssego, molho de iogurte, pão pita barrado de molho do assado, lentilhas salteadas com coentros, estes a irem muito bem com o tandoori e o molho. O borrego muito bem assado, a preparação suave, sem agressividade do tandoori. Novamente, o resto a condizer, alta classificação.
Finalmente o bife, o que eu mais esperava. Nota máxima para o lombo, também para a fritura em ponto certo, um pouco abaixo do “medium-rare” mas sem suco. Também o molho do chefe, uma variante de molho castanho à base de demi-glace ou de glace de viande, com nata, em que se notava gengibre, estava de bom nível, mas sem me maravilhar. A farofa a acompanhar não adiantava nada. Desgraça foram as batatas fritas, em palitos muito finos, sem qualquer enfarinhamento interior (veja-se as batatas em 2 ou 3 frituras) e temperadas com ervas, o que acentuou o sal. Estavam inaceitavelmente salgadas.
Como sobremesa,um gelado de goiaba sobre uma bolacha crocante de arroz e um pouco de curd de limão, acompanhado por dois pastelinhos com recheio de crème brulée, gelados. Bem conseguido, mas preferia os pasteis não gelados, a fazer contraste.
Entre 0 e 5, 4,2, por alguma falhas indesculpáveis que não são compensadas por outras coisas muito boas.

segunda-feira, 8 de junho de 2015

Cozinha na festa

Uma coisa é cozinha de festas outra coisa é cozinha na festa. A primeira, Natal, Páscoa, Carnaval nos Açores, é uso com tradução caseira, em nada irmanado com os valores e símbolos da festa. Diferente, e só conheço uma, é a cozinha do Espírito Santo nos Açores, que faz parte da própria festa, celebrada há duas semanas. Lembremo-nos, aliás, de que os aspetos profanos das festas, a cargo do mordomo (fabrico do pão, arranjo dos novilhos, distribuição das pensões de carne, vinho e massa sovada, foliões e cantorias, etc.), numa festa de fraternidade que vem das raízes franciscanas do acompanhamento do povoamento, sobrelevam os ritualmente religiosos, a cargo do imperador (repartição da coroa e bandeira pelos irmãos, terço final, coroação).
escrevi sobre isto.
Gastronomicamente, o melhor exemplo é o da Terceira, com a função: sopa de carne, cozido, alcatra. E é sobre a alcatra que vou dizer alguma coisa, protestando contra o que me dizem que foi perorado por alguém de um “restaurante especialista em alcatra”. parece que da Terceira. Não se confunda. À falta do restaurante da R. Álvaro de Sousa, o Espaço Açores, embora de cozinheira picarota, não desmerece.
A alcatra é só esmero de qualidade e técnica, a começar pelo alguidar alto não vidrado, sem tampa. Essencial! Também a lenta assadura a forno alto, mexendo-se a carne de vez em quando.
Vou ao que disse o tal especialista, para mostrar como vai mal a sabedoria gastronómica.
“É um prato que se chama alcatra e que não leva alcatra”. Erro. Durante muito tempo, o prato fez-se principalmente com a peça de vaca da parte superior da anca que resulta, muito caracteristicamente, em desfazer-se em fibras quando os pedaços são cortados ao comprimento. Chamava-se alcatra, como ainda hoje se chama cá (folha de alcatra) mas entretanto, não sei porquê, passou a chamar-se na Terceira rabadilha (era assim no meu tempo de miúdo). Hoje voltou ao nome de alcatra e quem a quiser fazer bem feita é esta a carne a usar. Na minha casa, para gelatina um pouco o molho, era hábito acrescentar um pouco de cachaço.
“A alcatra deve levar três carnes, para misturar sabores”. Tolice. As carnes de vaca diferem em textura, em suculência, mas não em sabor. De facto, a alcatra que se come hoje na Terceira, em restaurantes e em festas, varia em carnes, descendo até à alcatra pobre de chambão, mas isto tem a ver com a maior ou menor riqueza. Os novilhos são abatidos e arranjados, em mistura de carnes. As carnes de 3ª vão para o cozido, as outras para a alcatra. Esta diversidade é coisa prática, de aproveitamento total da carne, e não tem a ver com esquisitice sabores.
“A origem da alcatra é a chanfana beirã, origem do povoamento”. Coisa que está longe de certa, porque tudo indica que o povoamento veio de todo o país por onde o infante e a seguir o infante sobrinho tinham criados. Chanfana é prato de cabra, cuja produção é minúscula nos Açores e sempre foi. Chanfana é assado com vinho tinto, quando a tradição açoriana da alcatra é de vinho vermelho branco. Chanfana faz-se em assadeira baixa vidrada, diferente da alcatra.
Era bom que os sapateiros não subissem acima da chinela. Mas todo o português sabe coisas.

sábado, 2 de maio de 2015

Cozinha com data (1)

Em séculos de isolamento, só mitigados no século XIX, os açorianos mantiveram os costumes ancestrais, alguns até perdidos no continente. Hoje vou falar de cozinha de datas a propósito do 1º de Maio. Não é uma festa religiosa, como as demais em que se acrescenta as refeições tradicionais, nem tem a ver, mais recente com o dia do trabalhador. Julgo ser uma comemoração pagã, de Primavera.
É mais característica da Terceira. A figura pontificante é o maio, à varanda, um boneco feito com almofadas e trapos variados, com chapéu e cabeleira de palha. Será uma evocação dos espantalhos?
O almoço é tipicamente de chicharros com “molho de salsa verde” (seria mais lógico molho verde de salsa) e papas grossas.
Como já tenho escrito, o chicharro açoriano, “charrinho”, é do género Trichurus, como o carapau de cá, enquanto que o termo chicharro é cá mais usado para o carapau grande. A diferença entre o carapau açoriano (charrinho) e o continental, com marcada diferença de sabor, não radica, como em outros casos, das características das águas. É que são duas espécies diferentes: T. trachurus no continente, o carapau branco; e T. picturatus, o açoriano, carapau azul.
Dito isto, não há muitos mais segredos. O mais marcante talvez seja o de o peixe ser embrulhado, antes da fritura, em farinha de milho e não de trigo. Frita-se em óleo ou assa-se em sertã de barro. Escorre-se, deixa-se arrefecer e cobre-se com o molho de salsa verde, uma vinagrete aparentada com o molho à espanhola.
Em cru, misturar cebola picada, alho picado, salsa, sal, pimenta, malagueta, açaflor açoriana (nunca a curcuma ou açafrão indiano!), pimenta da Jamaica esmagada, azeite e vinagre.
Em S. Miguel é mais usado outro molho, o de vilão, um antigo molho português cá caído em desuso. Neste caso, o peixe tem de ser frito.
Guardar os charrinhos e escorrer. Alourar alho no óleo de fritar o peixe e juntar malagueta, pimenta da Jamaica (ou cravinho) e açaflor. Juntar umas colheres de vinagre e deixar apurar. Cobrir os charrinhos e servir quente ou frio. Para não ficar muito agreste, costumo rejeitar parte do óleo e substituir por azeite, antes de preparar o molho.
Faltam as papas grossas. Muito simples, são papas feitas com leite, farinha de milho de carolo, não peneirada, gemas de ovo e temperadas com açúcar e casca de limão. Ficam com consistência grossa, como o mais conhecido milho madeirense, que é salgado e não sobremesa
Já que falei em cozinha de data pagã, vou de volta há algumas semanas, ao Carnaval. Marcantemente, é nessa altura que se fazem e comem nos Açores os continentais fritos de Natal. Não há muita diferença nas rabanadas (lá fatias fritas ou douradas), coscorões, rodas-do.Egipto, sonhos. Filhoses é que ninguém entenderá, porque nos Açores são um frito de massa tipo choux e recheada com custaria. O que mais se assemelha às filhoses continentais são as melaçadas de S. Miguel. Não são propriamente fritos, porque se fazem em sertã ou, mais vulgarmente, na chapa do fogão de lenha.
2 kg de farinha, 6 c. sopa de açúcar, 12 ovos, 250 g de manteiga, leite q. b., 40 g de fermento de padeiro, 1-2 cálices de aguardente, raspa de limão. Diluir o fermento em leite morno. Amassar tudo muito bem, juntando um ovo de cada vez, até a massa estar fina (com consistência de polme grosso) e deixar levedar em lugar quente, num alguidar embrulhado em cobertores. Untar as mãos com óleo ou leite  e separar pedaços de massa, que se achatam em disco alto de cerca de 15 cm de diâmetro, com menos massa ao centro. Fritar em óleo bem quente. Servir frias, polvilhadas com açúcar ou com açúcar e canela.
Mas também estamos em meses, Abril e Maio, de festas religiosas, Páscoa e Espírito Santo. A Páscoa é muito diferente de cá em ilhas sem hábito gastronómico de cabrito ou borrego. Cabra é só para minguada produção de leite e carneiro ou ovelha para leite ou, antigamente, para puxar pequenas carroças de compras e cargas leves.
Na Terceira, é frequente a alcatra e sobressaem na mesa os doces de alfenim (só açúcar sólido, para diabéticos), amêndoas industriais e caseiras e confeitos. Em S. Miguel o prato é mais variado, entre galinha, carne de vaca assada ou porco.
Daqui a semanas, voltaremos a capítulo diferente e icónico também em festas tão ricas em diferentes aspectos, etnológico, musical, religioso, simbólico e também gastronómico. Refiro-me às grandes festas das gentes açorianas, as do Divino Senhor Espírito Santo. No sétimo domingo depois da Páscoa (número mágico judaico-cristão), caem este ano a 24 deste mês. Cá voltarei.

quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

domingo, 25 de janeiro de 2015

De regresso

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Há muitos restaurantes, chamemos-lhes populares, de bairro, atascados, em que se come muito bem feita a nossa óptima cozinha tradicional, nas suas muitas expressões regionais. Arriscam-se quando se afastam dessa estada que conhecem e dominam muito bem.
Hoje fez anos o meu sogro e apeteceu-lhe ir a um desses restaurantes, de que o resto da família também gosta muito. Eu, membro recente, não o conhecia, o Velho Mirante na Pontinha.
Em quase 80% do almoço, não desmereceu a fama. Petiscos vulgares mas bem saborosos – ovos com farinheira, morcela, gambas al ajillo (coisa espanhola) – óptimo bacalhau assado, mas escassamente abafado em tanta salada, bom fixe simples grelhado, várias peças de porco preto grelhadas em febra com um muito bom arroz de feijão.
A desgraça, em que eu embarquei, foi a feijoada à brasileira. Podia bem definir-se como aquilo a que se chama feijoada à transmontana (aqui com couves muito amargas, sem escaldadura prévia) mas com feijão preto. Vá lá, simbolicamente, carne seca, mas digo simbolicamente porque estava quase desfeita e era em dose vestigial. valha que, pedindo farinha de mandioca, havia,
É pena. Num restaurante de boa cozinha portuguesa, meteram na ementa um prato estranho, com muito mau resultado. Estes restaurantes vivem de uma escola informal, de cozinheira para cozinheira, velha sabedoria. Porem-nas a fazer coisas “aprendidas” sabe-se lá como só pode dar asneira. A propósito: também já vi isto por cá com muamba ou com alcatra da Terceira.
Para não ficar só pela crítica, hoje publico a receita da feijoada. Ou melhor, uma de milhentas, quase tantas quantas as famílias. Comparem com a letra da Feijoada do Chico Buarque e notarão diferenças. Também com uma que comi no Rio, numa espécie de boteco predilecto do meu amigo Eduardo. Esta que aqui vai é de outra grande amiga, boa cozinheira baiana.
8 pessoas. 500 g de feijão preto, 1 chispe grande (1,5 kg), 500 g de carne seca, 500 g de carne de porco, 350 g de toucinho, 250 g de presunto, paio ou bacon, 1/2 chouriço, 4 linguiças brasileiras (linguiça fresca, curta e grossa, para grelhar), 1 cebola grande, 4 dentes de alho, 1 folha de louro, óleo, sal, pimenta preta. 100 g de arroz, 400 g de couve ripada, 2-3 laranjas, farinha de pau. 
Dois dias antes, salgar o chispe e o toucinho. De véspera, deixar o feijão em água e dessalgar a carne seca. Algumas horas antes da confecção, dessalgar também o chispe e o toucinho.
Cozer separadamente o feijão e as carnes, juntando às carnes enchidos variados. Quando o feijão estiver macio, juntar tudo e deixar engrossar os caldos.
Fazer refogado de cebola e alho e juntar o feijão e o molho, a apurar bem. As carnes são servidas à parte.
Serve-se com:
Linguiça brasileira, grelhada.
Couve mineira: ripada como para caldo verde, escaldada, cozida em nova água e salteada em azeite, eventualmente com tiras finas de bacon.
Laranja.
Arroz.
Farinha de mandioca torrada.
Molho picante: cebola crua picada e alho, um pouco do molho do feijão, vinagre, piripiri.
Pode ser difícil encontrar carne seca. Não preciso de ir muito longe. Compro-a numa mercearia na Amadora, defronte da estação da CP, especialista em produtos exóticos.