terça-feira, 30 de junho de 2015

O Talho

Há já algum tempo que desejava ir ao Talho, depois de ler boas críticas. Hoje vai a minha, em estilo telegráfico. Espaço agradável, com boa decoração, ao estilo do que gosta a clientela: jovens gestores ou yuppies que não estão a sofrer a crise nem o desemprego de licenciados. Com esta clientela, e uma mesa de turistas, fora nós, era o padrão de moda e sucesso do restaurante. Vamos a ver com o CookOff, porque esta clientela cultiva-se hoje gastronomicamente é com Masterchefs e que tais. 
Péssima acústica, a impedir qualquer conversa mais aconchegada. Nos sanitários, um dispensador de toalhas de papel, preso à parede, como se vê em qualquer tasca. Amesendação correta e serviço muito aceitável, com excesso de casualidade dos uniformes, mas de acordo com o restaurante (Nota – já raramente se vê pessoal de mesa com casaco e gravata).
Couvert de bons pães, incluindo papari, uma boa pasta de fígado e duas manteigas, uma de parmesão e outra de especiarias tailandesas. Com a água filtrada, fica por 7,25 €, o que, somado aos 45€ do meu de degustação, é carote. Vamos ao que se comeu. No entanto, a refeição é carta é mais razoável, com entradas entre 9 e 11 € (fora o foie gras), pratos entre 17 e 23 € e sobremesas à volta dos 6 €.
Croquetes. Uma desilusão. O que tinham de bom, o sabor dos restos das carnes de cozido, com destaque para hortelã, tinham mau de confecção, moles, molhados, com o polme a soltar-se dos croquetes. Em contrapartida, uma boa maionese de chouriço, nada agressiva.
Ceviche. Muito bem, com ótimo peixe (qual? esqueci-me de perguntar), o leite de tigre muito equilibrado. Pequena crítica: um fundo de puré de batata doce, muito aguado, a não adiantar nada ao misturar-se com o molho do ceviche.
Foie gras. Vinha foie gras maturado, cereais tostados, geleia de saquê e líchias. Muito boa a combinação asiática com as líchias. Foie gras de muito bom nível, mas com excesso de sinais da salmoura.
Bochecha de vitela sobre cuscus de frutos secos e legumes à grega. A bochecha estava excelente, estufada a baixa temperatura, a desfazer-se. Cuscus muito bem temperado, os legumes marinados em vinho branco e salteados, ao dente. Nada a reparar.
Borrego tandoori, chutney de pêssego, molho de iogurte, pão pita barrado de molho do assado, lentilhas salteadas com coentros, estes a irem muito bem com o tandoori e o molho. O borrego muito bem assado, a preparação suave, sem agressividade do tandoori. Novamente, o resto a condizer, alta classificação.
Finalmente o bife, o que eu mais esperava. Nota máxima para o lombo, também para a fritura em ponto certo, um pouco abaixo do “medium-rare” mas sem suco. Também o molho do chefe, uma variante de molho castanho à base de demi-glace ou de glace de viande, com nata, em que se notava gengibre, estava de bom nível, mas sem me maravilhar. A farofa a acompanhar não adiantava nada. Desgraça foram as batatas fritas, em palitos muito finos, sem qualquer enfarinhamento interior (veja-se as batatas em 2 ou 3 frituras) e temperadas com ervas, o que acentuou o sal. Estavam inaceitavelmente salgadas.
Como sobremesa,um gelado de goiaba sobre uma bolacha crocante de arroz e um pouco de curd de limão, acompanhado por dois pastelinhos com recheio de crème brulée, gelados. Bem conseguido, mas preferia os pasteis não gelados, a fazer contraste.
Entre 0 e 5, 4,2, por alguma falhas indesculpáveis que não são compensadas por outras coisas muito boas.

segunda-feira, 8 de junho de 2015

Cozinha na festa

Uma coisa é cozinha de festas outra coisa é cozinha na festa. A primeira, Natal, Páscoa, Carnaval nos Açores, é uso com tradução caseira, em nada irmanado com os valores e símbolos da festa. Diferente, e só conheço uma, é a cozinha do Espírito Santo nos Açores, que faz parte da própria festa, celebrada há duas semanas. Lembremo-nos, aliás, de que os aspetos profanos das festas, a cargo do mordomo (fabrico do pão, arranjo dos novilhos, distribuição das pensões de carne, vinho e massa sovada, foliões e cantorias, etc.), numa festa de fraternidade que vem das raízes franciscanas do acompanhamento do povoamento, sobrelevam os ritualmente religiosos, a cargo do imperador (repartição da coroa e bandeira pelos irmãos, terço final, coroação).
escrevi sobre isto.
Gastronomicamente, o melhor exemplo é o da Terceira, com a função: sopa de carne, cozido, alcatra. E é sobre a alcatra que vou dizer alguma coisa, protestando contra o que me dizem que foi perorado por alguém de um “restaurante especialista em alcatra”. parece que da Terceira. Não se confunda. À falta do restaurante da R. Álvaro de Sousa, o Espaço Açores, embora de cozinheira picarota, não desmerece.
A alcatra é só esmero de qualidade e técnica, a começar pelo alguidar alto não vidrado, sem tampa. Essencial! Também a lenta assadura a forno alto, mexendo-se a carne de vez em quando.
Vou ao que disse o tal especialista, para mostrar como vai mal a sabedoria gastronómica.
“É um prato que se chama alcatra e que não leva alcatra”. Erro. Durante muito tempo, o prato fez-se principalmente com a peça de vaca da parte superior da anca que resulta, muito caracteristicamente, em desfazer-se em fibras quando os pedaços são cortados ao comprimento. Chamava-se alcatra, como ainda hoje se chama cá (folha de alcatra) mas entretanto, não sei porquê, passou a chamar-se na Terceira rabadilha (era assim no meu tempo de miúdo). Hoje voltou ao nome de alcatra e quem a quiser fazer bem feita é esta a carne a usar. Na minha casa, para gelatina um pouco o molho, era hábito acrescentar um pouco de cachaço.
“A alcatra deve levar três carnes, para misturar sabores”. Tolice. As carnes de vaca diferem em textura, em suculência, mas não em sabor. De facto, a alcatra que se come hoje na Terceira, em restaurantes e em festas, varia em carnes, descendo até à alcatra pobre de chambão, mas isto tem a ver com a maior ou menor riqueza. Os novilhos são abatidos e arranjados, em mistura de carnes. As carnes de 3ª vão para o cozido, as outras para a alcatra. Esta diversidade é coisa prática, de aproveitamento total da carne, e não tem a ver com esquisitice sabores.
“A origem da alcatra é a chanfana beirã, origem do povoamento”. Coisa que está longe de certa, porque tudo indica que o povoamento veio de todo o país por onde o infante e a seguir o infante sobrinho tinham criados. Chanfana é prato de cabra, cuja produção é minúscula nos Açores e sempre foi. Chanfana é assado com vinho tinto, quando a tradição açoriana da alcatra é de vinho vermelho branco. Chanfana faz-se em assadeira baixa vidrada, diferente da alcatra.
Era bom que os sapateiros não subissem acima da chinela. Mas todo o português sabe coisas.