quarta-feira, 29 de março de 2017

Um ótimo restaurante no Funchal

Recomendo vivamente o Armazém do Sal, na Rua da Alfândega, bem no centro-marginal. Num sábado ao jantar, estava injustamente a dois terços, e mais com portugueses, madeirenses ou continentais. Os turistas vão para a R. Santa Maria, restaurantes porta sim porta sim e com ementas iguais.
No dia, como experiência especial, propunham um menu de degustação só de peixe, a 45 . Pareceu-me coisa desafiante, fomos por isso e, com uma pequena nota negativa, foi experiência bem conseguida.
O menu constava de: amouse bouche de mousse de atum e salicórnia (ver nota); entrada de cavala em escabeche, com peixinhos da horta de espargos verdes, os filetes sobre cama de legumes picados e curtidos; bodião com lulas em tempura, esferas de batata e de meloa, framboesa, tomate cereja, pingos de puré de verdes e de puré de azeitona; limpa palato de ovas de truta; paupiete de espada preto, sobre cama de polenta, molho de maracujá, mas novamente os purés de verdes e de azeitonas; sobremesa de esfera de tangerina, como descrito adiante; com o café, uma mignardise, um cubo tipo cocada com amêndoa, com uma compota de framboesa e pó de ouro.
Cozinha de autor, imaginativa, boa conceção dos pratos, muito boa técnica. Apenas o senão de um relativo excesso de componentes e que se repetem parcialmente de prato para prato.
Quis saber alguma coisa sobre o chefe, Roberto Barros, um ainda “jovem”, a beirar os 30. Para minha surpresa, soube que é um autodidata, sem escola, que há dez anos entrou para o restaurante como copeiro e foi aprendendo cozinha. É uma vocação enorme. Não me parece que lucre nada agora com um curso de hotelaria (só como professor), mas, com um bom estágio num grande restaurante no estrangeiro, a Madeira podia esperar mais uma estrela Michelin, para além do Gallo d’Oro.
Não podendo descrever tudo, até para manter alguma expetativa em aberto, refiro uma das melhores sobremesas que já comi. Uma esfera de chocolate contendo gelado de tangerina e espuma de tangerina, regada com molho quente de chocolate, caramelo e coco.
Comparando com Lisboa, com a minha lista de preferências, coloco-o só ligeiramente abaixo do 100 Maneiras e acima do Alma.
NOTA: a salicórnia andava muito arredada dos nossos usos, até começar a estar sempre presente nos supermercados (falo pelo Jumbo de Alfragide). É excelente, sozinha, por exemplo frita como tempura, a acompanhar fumados de peixe ou em saladas, ou em pastas. Tem sabor a mar e é salgada. Não conhecia mas agora uso muito.

quinta-feira, 2 de março de 2017

O carnaval na gastronomia açoriana

Os fritos de Natal, no continente português, comem-se é no carnaval, nos Açores. Rabanadas – termo não usado nos Açores, em desfavor dos também continentais fatias fritas ou fatias douradas –, sonhos, coscorões, rosas-do-Egito, fazem-se lá tal como cá.
Diferente é a substituição das filhoses continentais por duas coisas bastante diferentes. Mais próximas, mas claramente distintas, são as melaçadas (para muitos, malassadas) micaelenses.
Na recolha de Augusto Gomes (“Cozinha Tradicional de S. Miguel”), indica-se usar 2 kg de farinha, 6 c. sopa de açúcar, 12 ovos, 250 g de manteiga, leite q. b., 40 g de fermento de padeiro, 1-2 cálices de aguardente, raspa de limão. Diluir o fermento em leite morno. Amassar tudo muito bem, juntando um ovo de cada vez, até a massa estar fina (com consistência de polme grosso) e deixar levedar em lugar quente, num alguidar embrulhado em cobertores. Untar as mãos com óleo ou leite  e separar pedaços de massa, que se achatam em disco alto de cerca de 15 cm de diâmetro, com menos massa ao centro. Fritar em óleo bem quente. Servir frias, polvilhadas com açúcar ou com açúcar e canela.
A minha avó paterna, minha grã-mestre da cozinha tradicional micaelense, variava nos ingredientes: 1 Kg de farinha, 5 ovos, 20 g de fermento de padeiro, leite e água qb, 60 g de manteiga, 60 g de banha, 1 cálice de aguardente, raspa de limão.
Originais são também as filhós (filhoses) açorianas, recheadas e no forno, mais típicas da Terceira (mas eu sou híbrido e tenho herança culinária paterna micaelense e materna terceirense). 250 g de farinha, 5 dl de leite, 2 c. sopa de açúcar, 3 c. sopa de manteiga, erva-doce a gosto. Há quem ponha um pau de canela (por exemplo, na minha casa de família), 6 ovos. Mistura-se bem tudo, sem os ovos e leva-se a ferver. Deixando arrefecer, mistura-se bem com os ovos, um a um. tendem-se em bolos de cerca de 10 cm e leva-se ao forno. Na minha casa, cortavam-se ao meio e recheavam-se com creme pasteleiro.
Mas agora já é quaresma, tempo de penitência e não de gulodices. A minha mãe, que tinha tanto de gulosa como de religiosa, fazia promessa de não comer doces durante a quaresma. Mas haviam de ver o que era de doces a mesa do almoço de Páscoa.